PEDRO GAMELEIRO – VIDA ALÉM DA MÚSICA E DOS
UTILITÁRIOS
Ao
final das tardes de domingo, Sô Pedro Gameleiro – Pedro Venâncio de Freitas – saía
do Alto do Cascalho, caminhava lentamente pelas ruas a tocar sua sanfona, ou
acordeon, e chegava ao Largo das Forras. Logo, acomodava-se em um dos bancos e
fazia soar sua música. O som se expandia e ocupava tudo. Sô Pedro sozinho com sua
sanfona enchia a o largo de musicalidade, era a nossa paisagem sonora aquecida
por sua presença e sua humanidade. Não me lembro da cor da voz desse
personagem, porque quando tocava, comunicava-se através de gestos e com os seus
olhares. Ainda sinto o movimento daqueles olhos, escuros e com um círculo
azulado, que nos fitava, transmitia segurança e alegria pela VIDA.
Infelizmente, subsistem poucos registros desse personagem. Mas suas lembranças
ainda estão presentes na memória de diversos tiradentinos.
A música sempre esteve presente na vida do Sô Pedro Gameleiro, quando aconteciam os piqueniques no alto da Serra de São José, lá ia ele com a sanfona levar alegria; também tocava nas festas juninas do Aimorés Futebol Clube e dava mais graça aos “casamentos do jeca”, encenados na Rua Direita.
Pedro
Venâncio nasceu em “Canoas”, denominação que foi transcrita erroneamente como
“Coroas”, o atual município de Coronel Xavier Chaves. Era descendente direto de
escravizados e fugiu para viver em uma “loca de pedra” na Serra de São José.
Sempre que se perguntava quantos anos tinha, dizia que era uns 70. Até que José
Malta esteve em Coronel Xavier Chaves e encontrou seus registros, Sô Pedro teve
uma longevidade expressiva, ultrapassou os 107 anos de idade. Da serra veio
morar em Tiradentes e se casou com Dona Dolores, com quem teve filhos, um deles
foi Manoel, que foi para São Paulo e se tornou policial truculento, por isso
acabou assassinado dentro de um ônibus, por um dos seus torturados.
Sô
Pedro viveu em sua casa bem rústica, edificada em adobe, piso de terra batida e
coberta por capim-sapé (Imperata brasiliensis), bem mais tarde recebeu
cobertura de telha de barro. A casinha ficava no topo de uma colina e mais
abaixo se encontrava o Pocinho do Cascalho. Às vezes, Sô Pedro se sentava na
porta de sua morada e tocava a sanfona para alegrar o entardecer. Infelizmente,
sua casa foi demolida e o Pocinho do Cascalho devastado pela Prefeitura de
Tiradentes, na década de 1990. Posteriormente, com o apoio dos moradores
abriram outro poço e fizeram uma cobertura para proteger o antigo.
Local do Pocinho do Cascalho, junto à casa do Sô Pedro e Dona Dolores, ainda com o maquinário da Prefeitura,década de 1990 e em 2022. Fotografias: Luiz Cruz.
No Pocinho do Cascalho muitas mulheres lavavam roupas, buscavam a água para cozinhar e para a higiene pessoal. Dona Henriqueta Eunice Ferreira trabalhou por décadas seguidas como lavadeira e era nesse Pocinho que conseguia realizar essa atividade, para ajudar no sustento familiar. Dona Antônia Maria Jacques, nossa querida Dona Niquinha, morou por mais de três décadas perto do Pocinho, de onde coletou água para construir sua morada e para todos os usos domésticos. Com os olhos a exalar gratidão, ela nos conta sobre a harmoniosa convivência com o Sô Pedro Gameleiro, que tocava a sanfona para agradar seus filhos, enviava cestinhos com frutas e para o seu favorito, Valmir Geraldo Jacques, “preparava sempre um queijinho curado”. Dona Niquinha recorda com satisfação dos tempos em que várias lavadeiras passavam horas naquele lugar, onde a criançada brincava, ficava suja de terra e ao final da tarde, antes de retornar para casa, muitos meninos tomavam banho lá, a balde, com a água do Pocinho.
Para sobreviver, Sô Pedro Gameleiro trabalhou nas lavouras e fazia peças em madeira, especialmente gamela, bateia, colher de pau, soquete de feijão e pilão – para pilar arroz, café ou fazer “colorau”. Suas peças eram vendidas na tradicional Loja Santíssima Trindade, então, propriedade de Francisco Barbosa Junior. Elas foram parar em muitas cozinhas brasileiras e também em coleções particulares. Quando surgiu a CAT - Corporação dos Artesãos de Tiradentes, Sô Pedro foi eleito como Presidente de Honra da entidade, por ser o artesão mais antigo e em atuação naquela ocasião. Era o artesão mais querido por todos.
Sô Pedro Gameleiro foi também um benzedor respeitado, quando o tempo ficava fechado, com a Serra de São José bem escura, com risco de temporal, vendaval ou chuva de granizo, ele benzia para abrandar e a chuva chegar mansinha; para isso fazia orações e utilizava uma peneira tecida em taquara. Sempre foi muito reservado e aos sábados ia a pé a São João del-Rei para comprar carne bovina, quando era possível, retornava no trem, que circulou entre São João del-Rei e o antigo Sítio – atual município de Antônio Carlos.
José Geraldo com uma das gamelas que fez, comoaprendeu Sô Pedro fazia e seu irmão Pedro Paulo. Foto: Luiz Cruz.
Os
irmãos Malta – José Geraldo e Pedro Paulo guardam muitas lembranças do Sô Pedro
Gameleiro e contam os seus casos com entusiasmo. José Geraldo ainda bem
pequeno, acompanhou as andanças de seu pai José Malta juntamente com o artesão
das gamelas, com ele aprendeu a fazer as peças a utilizar poucos instrumentos
para a confecção do objeto utilitário; assim, ainda se mantêm essa tradição
artesanal.
A
vida e a história de Pedro Venâncio de Freitas enriquecem o Patrimônio Humano de
Tiradentes.
Esplêndido!!! Que história maravilhosa!!!
ResponderExcluirMuito obrigado. Sô Pedro foi uma figura encantadora!
ExcluirDelícia saber tudo isso!
ResponderExcluirLuiz, que bela história...confesso e lamento por não haver conhecido Sô Pedro Gameleiro...Caso o tivesse, quantos ensinamentos e dedos de prosa poderia ter com ele. Impressionante o fato de ele ter sido descendente direto de escravizados, talvez fosse atribuído a isso o fato de ele ter feito tantas peças em madeira, artefatos usados ainda em tempos de cativeiro, assim como as rezas e benzeções e é claro, a música... História comovente e real. O artista se foi, mas as belas obras ficaram. Gratidão 🙏🏿.
ResponderExcluirRogério, alegria por sua presença aqui. Para nossa surpresa, ainda temos muitos tiradentinos que conviveram com o Sô Pedro Gameleiro, os relatos são fabulosos. Precisamos registrar mais e tornar de conhecimento de todos os inúmeros casos. Muito obrigado e meu abraço
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