PEDRO GAMELEIRO – VIDA ALÉM DA MÚSICA E DOS UTILITÁRIOS

Ao final das tardes de domingo, Sô Pedro Gameleiro – Pedro Venâncio de Freitas – saía do Alto do Cascalho, caminhava lentamente pelas ruas a tocar sua sanfona, ou acordeon, e chegava ao Largo das Forras. Logo, acomodava-se em um dos bancos e fazia soar sua música. O som se expandia e ocupava tudo. Sô Pedro sozinho com sua sanfona enchia a o largo de musicalidade, era a nossa paisagem sonora aquecida por sua presença e sua humanidade. Não me lembro da cor da voz desse personagem, porque quando tocava, comunicava-se através de gestos e com os seus olhares. Ainda sinto o movimento daqueles olhos, escuros e com um círculo azulado, que nos fitava, transmitia segurança e alegria pela VIDA. Infelizmente, subsistem poucos registros desse personagem. Mas suas lembranças ainda estão presentes na memória de diversos tiradentinos.


    O menino Leonardo de Matos, a observar o sanfoneiro Pedro Venâncio, no Largo das Forras,
    década de 1980. Fotografia de Eros Conceição, acervo Leonardo de Matos.

A música sempre esteve presente na vida do Sô Pedro Gameleiro, quando aconteciam os piqueniques no alto da Serra de São José, lá ia ele com a sanfona levar alegria; também tocava nas festas juninas do Aimorés Futebol Clube e dava mais graça aos “casamentos do jeca”, encenados na Rua Direita.

Pedro Venâncio nasceu em “Canoas”, denominação que foi transcrita erroneamente como “Coroas”, o atual município de Coronel Xavier Chaves. Era descendente direto de escravizados e fugiu para viver em uma “loca de pedra” na Serra de São José. Sempre que se perguntava quantos anos tinha, dizia que era uns 70. Até que José Malta esteve em Coronel Xavier Chaves e encontrou seus registros, Sô Pedro teve uma longevidade expressiva, ultrapassou os 107 anos de idade. Da serra veio morar em Tiradentes e se casou com Dona Dolores, com quem teve filhos, um deles foi Manoel, que foi para São Paulo e se tornou policial truculento, por isso acabou assassinado dentro de um ônibus, por um dos seus torturados.

Sô Pedro viveu em sua casa bem rústica, edificada em adobe, piso de terra batida e coberta por capim-sapé (Imperata brasiliensis), bem mais tarde recebeu cobertura de telha de barro. A casinha ficava no topo de uma colina e mais abaixo se encontrava o Pocinho do Cascalho. Às vezes, Sô Pedro se sentava na porta de sua morada e tocava a sanfona para alegrar o entardecer. Infelizmente, sua casa foi demolida e o Pocinho do Cascalho devastado pela Prefeitura de Tiradentes, na década de 1990. Posteriormente, com o apoio dos moradores abriram outro poço e fizeram uma cobertura para proteger o antigo.

                                       

                                        


Local do Pocinho do Cascalho, junto à casa do Sô Pedro e Dona Dolores, ainda com o maquinário da Prefeitura, 
década de 1990 e em 2022. Fotografias: Luiz Cruz.

No Pocinho do Cascalho muitas mulheres lavavam roupas, buscavam a água para cozinhar e para a higiene pessoal. Dona Henriqueta Eunice Ferreira trabalhou por décadas seguidas como lavadeira e era nesse Pocinho que conseguia realizar essa atividade, para ajudar no sustento familiar. Dona Antônia Maria Jacques, nossa querida Dona Niquinha, morou por mais de três décadas perto do Pocinho, de onde coletou água para construir sua morada e para todos os usos domésticos. Com os olhos a exalar gratidão, ela nos conta sobre a harmoniosa convivência com o Sô Pedro Gameleiro, que tocava a sanfona para agradar seus filhos, enviava cestinhos com frutas e para o seu favorito, Valmir Geraldo Jacques, “preparava sempre um queijinho curado”. Dona Niquinha recorda com satisfação dos tempos em que várias lavadeiras passavam horas naquele lugar, onde a criançada brincava, ficava suja de terra e ao final da tarde, antes de retornar para casa, muitos meninos tomavam banho lá, a balde, com a água do Pocinho.

                          

 Dona Niquinha com seus filhos que brincaram no Pocinho doCascalho e conviveram com Sô Pedro. Foto: Luiz Cruz.

Para sobreviver, Sô Pedro Gameleiro trabalhou nas lavouras e fazia peças em madeira, especialmente gamela, bateia, colher de pau, soquete de feijão e pilão – para pilar arroz, café ou fazer “colorau”. Suas peças eram vendidas na tradicional Loja Santíssima Trindade, então, propriedade de Francisco Barbosa Junior. Elas foram parar em muitas cozinhas brasileiras e também em coleções particulares. Quando surgiu a CAT - Corporação dos Artesãos de Tiradentes, Sô Pedro foi eleito como Presidente de Honra da entidade, por ser o artesão mais antigo e em atuação naquela ocasião. Era o artesão mais querido por todos.

                               


Bateia em madeira, peça confeccionada por Sô Pedro Gameleiro.   Acervo e fotografia de Luiz Cruz.

Sô Pedro Gameleiro foi também um benzedor respeitado, quando o tempo ficava fechado, com a Serra de São José bem escura, com risco de temporal, vendaval ou chuva de granizo, ele benzia para abrandar e a chuva chegar mansinha; para isso fazia orações e utilizava uma peneira tecida em taquara. Sempre foi muito reservado e aos sábados ia a pé a São João del-Rei para comprar carne bovina, quando era possível, retornava no trem, que circulou entre São João del-Rei e o antigo Sítio – atual município de Antônio Carlos.

                                        

José Geraldo com uma das gamelas que fez, comoaprendeu Sô Pedro fazia e seu irmão Pedro Paulo. Foto: Luiz Cruz.


Os irmãos Malta – José Geraldo e Pedro Paulo guardam muitas lembranças do Sô Pedro Gameleiro e contam os seus casos com entusiasmo. José Geraldo ainda bem pequeno, acompanhou as andanças de seu pai José Malta juntamente com o artesão das gamelas, com ele aprendeu a fazer as peças a utilizar poucos instrumentos para a confecção do objeto utilitário; assim, ainda se mantêm essa tradição artesanal.

A vida e a história de Pedro Venâncio de Freitas enriquecem o Patrimônio Humano de Tiradentes.

 

 

 

Comentários

  1. Esplêndido!!! Que história maravilhosa!!!

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  2. Delícia saber tudo isso!

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  3. Luiz, que bela história...confesso e lamento por não haver conhecido Sô Pedro Gameleiro...Caso o tivesse, quantos ensinamentos e dedos de prosa poderia ter com ele. Impressionante o fato de ele ter sido descendente direto de escravizados, talvez fosse atribuído a isso o fato de ele ter feito tantas peças em madeira, artefatos usados ainda em tempos de cativeiro, assim como as rezas e benzeções e é claro, a música... História comovente e real. O artista se foi, mas as belas obras ficaram. Gratidão 🙏🏿.

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    1. Rogério, alegria por sua presença aqui. Para nossa surpresa, ainda temos muitos tiradentinos que conviveram com o Sô Pedro Gameleiro, os relatos são fabulosos. Precisamos registrar mais e tornar de conhecimento de todos os inúmeros casos. Muito obrigado e meu abraço

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