A lição que vem de Oliveira
 

[...] Lembranças, dos falecidos

Almas penadas, orar, pedir paz.

Parentes, amigos, desconhecidos,

Quanta tristeza, saudades, o dia traz.

 

Finda o dia,

Silêncio, almas vivas, a soluçar

Novos desígnios e alegria,

Novo ano. Corpos novos a descansar. [...]

Márcio Almeida, Ocopoema.

 


Praça da Matriz de Nossa Senhora de Oliveira, 1880. Acervo: J. Lima.

Disponível em: @oliveiraemfoco.

 

Oliveira é uma das cidades desmembradas da antiga Vila de São José – a atual Tiradentes. Povoado de Nossa Senhora de Oliveira, depois Vila da Oliveira, a partir de 1840, acabou por se conformar em vasto território, com os seguintes distritos: Nossa Senhora do Carmo do Japão, Nossa Senhora do Carmo da Mata, Nossa Senhora da Glória do Passa Tempo, Nossa Senhora da Aparecida do Cláudio, Nossa Senhora do Bom Sucesso, Santana do Jacaré, Santo Antônio do Amparo, Perdões, Cana Verde, São Francisco de Oliveira, e São João Batista. Atualmente, apenas o antigo Arraial São João Batista – Morro do Ferro, integra o termo de Oliveira, os demais se tornaram municipalidades.

 

Casarão do antigo Largo do Rosário, atual Praça Dr. José Ribeiro da Silva, Oliveira-MG. 

Disponível em @oliveiraemfoco.

 

Oliveira “nasceu de uma encruzilhada”, conforme nos informa o historiador Luís Gonzaga da Fonseca, no livro História de Oliveira, de 1961. Diferentemente dos primeiros núcleos instalados a partir dos achados auríferos, como Mariana, Ouro Preto e Sabará. “O topônimo se deve a uma mulher de nome Maria de Oliveira, que morava numa casa na encruzilhada de vertentes estratégicas, transformada em pousada para os transeuntes.” (ALMEIDA, 2011, p.77). As atividades agropastoris impulsionaram o desenvolvimento da localidade, que logo se estruturou e construiu sua igreja matriz dedicada à Nossa Senhora da Oliveira. A partir de 1752/1754, ocorreram os registros de sesmarias, ou seja, a concessão de terras aos sesmeiros: Domingos Vieira da Motta, na Paragem do Campo Grande; em 1753, a Pedro Gomes Barrozo e sócios, na Paragem da Campanha do Bom Jesus; em 1753, a Ignácio Affonso Bragança, na Mata do Rio da Boa Vista; em, 1753, a Antônio Pinto de Souza, em Campos Gerais; em 1774, a Jacintha Maria d’Assunção, na Margem do Rio Jacaré e tantas outras ao longo do século XVIII. (ALMEIDA, 2011).


Aspecto do conjunto arquitetônico de Oliveira-MG, atualmente tombado pelo IEPHA.

 Disponível em @oliveiraemfoco.

 

Conformada urbanisticamente a partir da Matriz de Nossa Senhora da Oliveira – edificação de significativa imponência do conjunto arquitetônico, detentora de imponentes casarões, conforme os diversos registros fotográficos subsistentes. Os mais suntuosos eram as residências dos fazendeiros da região. Além do patrimônio edificado, a cidade sempre se destacou por suas atividades da agricultura, da educação, das festas sagradas e profanas – a Semana Santa, o Carnaval – com seus blocos tradicionais, o Reinado de Nossa Senhora do Rosário, um dos mais completos de Minas Gerais e atualmente em processo de registro como Patrimônio Nacional, pelo IPHAN. Berço de figuras expressivas tanto para a localidade quanto para o país, como o professor José Oiticica (1882-1957) – humanista, filólogo e poliglota que nos legou discípulos do quilate de Pedro Nava e Manuel Bandeira. José Oiticica foi avô de Hélio Oiticica (1937-1980), artista visual dos mais célebres do Brasil, com obras em diversos museus internacionais e destaque no Instituto Inhotim, o maior museu a céu aberto do mundo.

Outra grande figura oliveirense foi Carlos Justiniano Ribeiro Chagas (1878-1934), nascido na Fazenda Bom Retiro, filho de José Justiniano Chagas e Mariana Cândida Ribeiro de Castro Chagas. Formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, atuou como médico sanitarista, infectologista e clínico. Descobridor do ciclo completo da doença de chagas e outras enfermidades. Recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade Harvard e da Universidade de Paris. Por sua contribuição à ciência e à medicina, sua efígie figurou na cédula de Cruzados.

 

Cédula de Cruzados, com efígie e homenagem ao médico e cientista oliveirense Carlos Chagas. Acervo: Casa da Moeda, Casa dos Contos, Ouro Preto-MG.

 

Oliveira teve uma colônia sírio-libanesa que acabou por influenciar toda estrutura cultural da região. Ao longo do tempo, diversos professores e professoras atuaram e deixaram seus legados, muito além das ações educadoras, também com as atividades sociais. Dentre as figuras a se destacar: Dona Sefisa Laranjo Restier, professora de Língua Portuguesa e detentora de vasta cultura, trabalhou com teatro e compartilhava seus livros com os alunos. Dona Yolanda Pinheiro Chagas também lecionou Língua Portuguesa e foi proprietária de uma das bibliotecas mais esplêndidas da cidade. Aqui não seria possível listar tantas personalidades. Temos ainda nomes que poderiam ser de Eliseu Resende (1929-2011), engenheiro civil formado pela UFMG, com doutorado pela New York University e homem da política nacional à ativista cultural Ném Campos. Dentre os diversos grupos sociais, em todos, dos mais intelectualizados aos menos favorecidos economicamente, lá estão cidadãos oliveirenses distintos e que cotidianamente contribuem para a preservação do patrimônio cultural – material e imaterial da cidade. Isso faz a diferença e nos últimos anos, todo legado foi registrado em belas publicações. Em História Contemporânea de Oliveira – 1961-2011, de Márcio Almeida, João Bosco Ribeiro e outros autores, obra que demandou nada menos que 20 anos para ser concluída, mas se trata de publicação potente, em suas 1.100 páginas. Estrategicamente bem estruturada e teoricamente para ser “didática”, para perpassar pelos variados aspectos socioculturais oliveirenses, tornar-se memória e sobretudo para capturar a atenção do leitor. A edição é impecável.


Acervo: Luiz Cruz.

 

Em Cultura de Oliveira, dos autores Márcio Almeida e Amanda Vargas, percorre-se da década de 1950 aos dias atuais, numa edição cronológica que intercala os fatos com crônicas e imagens – a iluminar os acontecimentos cotidianos da localidade e apresentar os seus personagens integrantes do rico Patrimônio Humano, que proporciona vida ao espaço arquitetônico e urbanístico. Não é apenas para relembrar, as crônicas de João Bosco Ribeiro e Márcio Almeida transcendem e são necessárias por nos subsidiar para a reflexão e as sinuosidades para amparar a proteção dos bens culturais, como a que está na página 103, sob o título: “É possível resgatar para todos os valores culturais de Oliviera”.  

 

Lata de Balas Santa Rita, de Oliveira-MG, as deliciosas balas marcaram época

 e são fabricadas até a atualidade. Acervo: Luiz Cruz.

 

Resgatar e valorizar, por isso até as deliciosas Balas Santa Rita figuram lá. Obras que exaltam sobretudo o oliveirense e nos remetem àquela canção do Caetano Veloso: Gente – [...] Gente deve ser o bom / Tem de cuidar / De se respeitar o bom / Está certo dizer que estrelas estão no olhar / De alguém que o amor te elegeu para amar [...] Gente é para brilhar. E lá estão todos brilhando, cada um com o seu fazer, dos artistas aos anônimos que impulsionam tudo e até transformam as manifestações como o Cortejo do Boi do Rosário numa estupenda comoção, como foi a edição de 2023. Mas este cortejo é apenas um dos tantos eventos do Reinado de Nossa Senhora do Rosário, celebração surgida por volta de 1839, “com a organização da Irmandade Africana, cuja capelinha ‘vai desempenhar também o seu papel saliente na história local’”. (ALMEIDA, 2011, p.447). Posteriormente, o Reinado foi resgatado pelo casal Geraldo Bispo dos Santos e Dona Conceição Bispo, agora à frente Geraldo Bispo dos Santos Sobrinho, o atual capitão-mor – dos inúmeros congadeiros de todas as idades, com as diversas manifestações, até os mascarados do Cai n’água, que jamais serão identificados, mas lá ficaram registrados para a posteridade.


Acervo: Luiz Cruz.



     O Capitão-Mor Geraldo Bispo dos Santos, em 1954, fotografia acervo: Casa dos Congadeiros. Disponível em @oliveiraemfoco. Geraldo Bispo dos Santos Sobrinho, fotografia de João Belo, 2022.

 

    

 Cerimônia de benção e coroação dos reis e rainhas, Reinado de Nossa Senhora do Rosário, Oliveira-MG. Fotografias de João Belo, 2022. Disponíveis em @oliveiraemfoco.

 

O pesquisador e arquiteto Heraldo Laranjo lançou o livro Mistério & Fantasia – no universo barroco da paixão e da folia a nos apresentar toda materialidade e imaterialidade que envolve o fazer e acontecer dos blocos carnavalescos mais peculiares da cidade, o Cai n’água e As Gatinhas. Numa edição atraente, apresenta a história, a apropriação, os bastidores, os personagens que lideram e colocam os blocos na rua. É nada mais, nada menos que a afirmação de uma das festas momescas mais tradicionais e empolgantes de Minas Gerais. E acompanha a edição a revista Turma do Zeca Cainaguinha, para a meninada se inteirar e integrar. São partes componentes do Projeto Oliveira e seu Patrimônio Cultural.

Estas publicações caprichosas além de registrar a memória de Oliveira, acabam por se constituir num primoroso conjunto de instrumentos para ações de Educação Patrimonial, para reforçar a apropriação dos bens legados: “Ao conhecermos mais e melhor os bens culturais materiais e intangíveis, o sentimento de pertencimento e amor ao nosso lugar de origem e convivência se consolida”. (LARANJO, 2022). E em uma comunidade como Oliveira, na qual a Cultura é um dos traços mais acentuados, estas publicações chegaram para impulsioná-la mais. 

   


Acervo: Luiz Cruz.
 

Ainda teremos outros trabalhos, pois a cidade tem o privilégio de ter a Gazeta de Minas, lançada a 4 de setembro de 1887. Veio se tornar o mais antigo veículo de comunicação a circular no estado. Jornal que de forma ampla, trata do cotidiano da localidade, analisa com imparcialidade os fatos e transforma as notícias em memórias. Já são milhares de página disponíveis para as mais variadas pesquisas, mas o melhor mesmo é a credibilidade construída ao longo das décadas de jornalismo. Tudo está lá, das celebrações cívicas, das celebrações religiosas, até as histórias familiares, a vida social, as ameaças ao patrimônio arquitetônico e claro, também, as boas ações em sua defesa.

E falar em defesa do patrimônio oliveirense, não há como registrar aqui o apoio de dois personagens: Ângelo Oswaldo Araújo Santos e Priscila Freire, que além de prestigiar, sempre envidaram esforços para a salvaguarda dos bens da cidade. O núcleo antigo de Oliveira tem tombamento pelo IEPHA – Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico, bem como a Matriz de Nossa Senhora de Oliveira e as Ruínas do Casarão do Capitão Henrique. Além dos bens protegidos pela municipalidade.

Nem todo esplendor é barroco ou rococó – além das edificações coloniais, o conjunto arquitetônico de Oliveira foi contemplado com as construções em estilo eclético, art nouveau e art déco que se avolumaram e embelezaram a cidade, a proporcionar destaque:


Cidade dos palácios (...) que não fariam má figura nos melhores bairros do Rio de Janeiro. (...) Percorrendo-a, vê-se elevadíssimo número, uns trezentos ou mais, de prédios amplos e confortáveis, em sua maioria de feição antiga, porém muito bem conservada (...).

Tancredo Braga, jornalista e escritor teatral são-joanense (ed.1842- 08/07/1923). (LARANJO, 2011, p.179).

 

Diversos são os registros dos viajantes que passaram por Oliveira e anotaram o impacto positivo causado pela imponência dos casarões, verdadeiros palacetes; posteriormente, tema destacado em campanha pela preservação, realizada pelo pesquisador, arquiteto e restaurador Heraldo Laranjo, em Oliveira – Cidade dos Palacetes.


Criação e acervo: Heraldo Laranjo.

 

Uma das águias da platibanda do Palacete das Águias.

Fotografia de João Belo. Disponível em @oliveiraemfoco.

 

Fachadas frontal e lateral do Palacete das Águias, Oliveira-MG.

Fotografias de João Belo. Disponível em @oliveiraemfoco.


A convite de Ricardo Ribeiro Resende, visitamos Oliveira e fomos recebidos no Palacete das Águias, por Dona Arlete Ribeiro Resende, isso lá pelos meados da década de 1980. Portanto, tivemos a sorte e o privilégio em poder construir nossa própria memória em uma das edificações mais privilegiadas da cidade, em termos de localização, arquitetura, ornamentação, terreno, jardins e pomar. 

O palacete recebeu tal denominação por ter na platibanda das fachadas frontal e lateral esculturas de águias com as asas abertas (a nos lembrar das imponentes águias cariocas do Palácio do Catete).  O imóvel foi contemplado por pinturas parietais realizadas pelo pintor italiano João A. Comini, que vivia na antiga capital, o Rio de Janeiro. Três salões e um corredor receberam pinturas de paisagens naturais e arquitetônicas.  Desde sempre o homem ornamentou paredes, dos primórdios das cavernas até a atualidade; civilizações como as egípcias, gregas e italianas recorreram às pinturas parietais para ornamentar ambientes, com o emprego de técnicas distintas, principalmente “a fresco”. Pompéia teve inúmeras edificações ornamentadas com essas pinturas, inclusive com o uso da perspectiva linear, mas é o arquiteto Leon Battista Alberti, em seu tratado De Re Aedificatoria (A Arte de Construir), concluído em 1452, que destacou: “No revestimento das paredes não há nenhuma representação pictórica mais agradável e vistosa que aquela que representa colunatas de pedras”. (ALBERTI, 2012, p.361). O salão nobre do Palacete das Águias recebeu colunatas marmóreas, fingimentos têxteis e borlas, de significativa elegância.  Enquanto no salão de jantar, há paisagens intercaladas em cercadura com tarja, a centralizar frutas e flores.  Essa ornamentação pictórica espelha a sofisticação do modus vivendi dos seus ocupantes, que através de suas atividades econômicas, especialmente a agricultura cafeeira puderam lapidar o “gosto”, a educação e o bem viver.

 

Salão nobre do Palacete das Águias, com pinturas parietais, colunatas,

 têxteis e borlas fingidas. Pintor: João A. Comini. Oliveira-MG.

Fotografia acervo: Colúmbia Ribeiro Martins.

 

Salão nobre do Palacete das Águias, detalhe da pintura parietal,

coluna, têxteis e borlas.  Pintor: João A. Comini. Oliveira-MG.

Fotografia acervo: Colúmbia Ribeiro Martins.

 

  

Salão de jantar do Palacete das Águias, detalhe com as paisagens naturais.

 Pintor: João A. Comini. Oliveira-MG. Fotografia acervo: Colúmbia Ribeiro Martins.

  


Salão de jantar do Palacete das Águias, detalhe com as paisagens naturais e arquitetônicas.

   Pintor: João A. Comini. Oliveira-MG. Fotografia acervo: Colúmbia Ribeiro Martins.

 

 

Salão de jantar do Palacete das Águias, detalhe com as paisagens naturais

 e arquitetônicas.  Pintor: João A. Comini. Oliveira-MG. Fotografia acervo: Colúmbia Ribeiro Martins.

 

Muito além da ornamentação, o palacete se diferenciava por seu jardim, pelas plantas e o amplo terreno com o pomar. Nossa primeira refeição foi preparada pelo saudoso professor e chef Luís Antônio Vieira (1961-2019), que preparou um jantar memorável, ao utilizar os ingredientes colhidos da “horta”, comandada por Dona Arlete. O almoço foi preparado por Virgínia, filha da anfitriã, que ao se valer de uma receita de família, preparou uma saborosa lasanha. No palacete, a mesa era farta e com bons serviços. Tudo era impecável e imponente!

Torna-se necessário, aqui, salientar que o Palácio das Águias, localiza-se na Avenida Pinheiro Chagas, número 20, no centro, foi inventariado pelo Conselho Deliberativo Municipal do Patrimônio Cultural, devido seu valor histórico e artístico, ocorrido em abril de 2002. Um bem ao ser “inventariado”, automaticamente passa a ter proteção e atenção para a realização de qualquer intervenção, seja ela interna ou externa.

  

Dona Arlete Ribeiro Resende e seu pai, Euclides Ribeiro de Oliveira e Silva

 (proprietário do imóvel). Palacete das Águias, Oliveira-MG. 

 Fotografia acervo: Colúmbia Ribeiro Martins.

 


   

Plantas do Largo Frida Kahlo, em Tiradentes-MG, mudas trazidas dos jardins do Palacete das Águias, Oliveira-MG. Fotografias: Luiz Cruz.

 

No jardim se destacava uma alameda de dracenas, de cores e formas diversas. Em colunas de alvenaria com chapisco grosso, as orquídeas Cattleya walkeriana floriam em abundância e no orquidário encontramos plantas raras, além das bromélias esparramadas pelos troncos das árvores e em vasos. Trouxemos de Oliveira, do Palacete das Águias, um saco cheio de mudas, muitas delas enfeitam nosso jardim, no Largo Frida Kahlo, e ao serem indagadas, essas plantas também contam histórias.

 

Euclides Ribeiro de Oliveira e Silva (proprietário do Palacete das Águias)

 no alpendre, com a Virgínia e seu filho Bruninho no colo e a irmã Fatinha com

Ana Paula. Fotografia acervo: Colúmbia Ribeiro Martins.

 

Fatinha com o marido José Antônio, a sobrinha Julieta os filhos da

Fatinha e uma sobrinha de José Antônio. Fotografia acervo: Colúmbia Ribeiro Martins.

 

Sofia, a filha caçula de Dona Arlete, que atualmente vive na Bahia, ela no salão nobre. Na parede os quadros de retratos dos bisavós paternos e maternos.Palacete das Águias, Oliveira-MG. Fotografia acervo: Colúmbia Ribeiro Martins.

 

Como seria viver em edificação tão singular? Perguntamos a um dos antigos moradores e ele, Ricardo Ribeiro Resende, nos respondeu:

 

Minha mãe morou com meu avô durante uns dez anos ou mais, quando ele adoeceu e minha tia Dolorizinha casou-se (era a caçula).  Não sei exatamente a data (mais ou menos entre 1975 e 1985). Mas, meu avô materno Euclides Ribeiro de Oliveira e Silva morou muitos anos no Palacete das Águias com minha avó Dolores e os filhos, antes deles se casarem.

Na época, o jardim era muito bem cultivado com muitas flores. Na horta tinham vários pés de camélias centenárias (brancas e rosas), um pé de manacá, pereiras, três pés gigantescos de jabuticabas, manga espada, cambucás, laranjeiras e outras plantas. No porão, meu avô estocava o café, aguardando por melhores preços do mercado nacional e havia também uma casa grande onde o café era catado (depois de limpo e seco). Nas dependências da Fazenda do Cá Urra, o café era colocado para secar, depois retirava-se a casca. Quando ele vinha para o Palacete das Águias era para retirar as pedrinhas, o café quebrado e algumas cascas. As catadeiras do café realizavam esta tarefa, porque o café para exportação tinha que ser muito bem selecionado. As lavouras, terreiros e máquinas de beneficiamento (retirada da casca) do café ficavam na fazenda.

Na Fazenda também tinha uma casa muito bonita com jardins, galinheiros, laranjal, pessegueiros, macieiras, jabuticabeiras, mandiocal. Plantava-se e colhia-se de tudo: feijão, arroz, abóboras, milho, cana de açúcar etc. Praticamente, comprava-se somente o sal. Tudo era produzido na fazenda, naquele regime de mão de obra temporária.

Tinha também um açude, que fornecia a luz para iluminação da casa grande da Fazenda. À noite, também se caçavam tatus, pacas e outros animais, além da pesca nos açudes (pequenas usinas para a geração da energia elétrica). Nós, quando crianças passávamos as férias escolares na Fazenda. Era tudo muito divertido e rico. Durante o dia fazíamos muitos passeios. Ajudávamos na fabricação das goiabadas, pessegadas, melado de engenho (feito da garapa e consumido com queijo, mandioca ou cará), além dos bolos, biscoitos e diversas quitandas que as cozinheiras faziam à noite. Aproveitávamos umas horas da noite para ler alguns livros. Depois das 22 horas, a luz ia diminuindo de intensidade. Eu sempre tive hábitos noturnos. Ficavam apenas uma ou duas lâmpadas acesas depois das 22 horas.

 

Conforme o depoimento do antigo morador do Palacete das Águias, a edificação transcende a valoração arquitetônica e a ele se insere um modo de vida a congregar gerações de cidadãos oliveirenses.  Por contingências da vida, os moradores deixaram o imóvel e ele foi vendido para terceiros. Fechado, por longo período, a estrutura arquitetônica sofreu acentuado processo de degradação. Ocorreu esvaziamento do bem como um todo e um silêncio sepulcral de abateu sobre o casarão tão impregnado de histórias, fatos e vivências.

Recentemente, iniciaram as obras de restauração estrutural do palacete, mas parece que não avançaram com as obras de restauro artístico. Exemplar com tais características, com o emprego das técnicas vernaculares, demanda atenção e compreensão da importância do bem como um todo, além de ele ser integrante de um conjunto protegido por legislação específica, através do instrumento tombamento.

Quando há vontade para se recuperar uma obra de arte é meio caminho percorrido. Essas pinturas foram executadas sobre revestimento de argamassa, em parede de pau a pique. Ocorreram perdas de origens diversas, intervenções equivocadas e ataques por ação da presença de animais e insetos xilófagos. Apesar de tudo, há solução e todo resplendor dessa ornamentação ímpar pode e deve ser resgatado. À frente da obra está o pesquisador, arquiteto e restaurador Heraldo Tadeu Laranjo Mendonça, profissional conhecedor do sítio antigo de Oliveira, de cada edificação, de cada espacialidade/volumetria e seus materiais construtivos. Conhecedor da história dos seus antigos ocupantes e pessoa comprometida com a memória cultural oliveirense, não haveria nenhum outro profissional para enfrentar o desafio que esta obra de restauração demandará.

As pinturas parietais foram empregadas em edificações religiosas e civis de Minas Gerais, tornaram-se um gosto, um refinamento. Porém, com o passar do tempo, os revestimentos receberam repinturas, substituição de suporte e até mesmo demolições. Recentemente, a pintura parietal, um adamascado fingido, da Casa Padre Toledo, em Tiradentes, foi entregue à comunidade, devidamente restaurada. Em Juiz de Fora, o palacete que atualmente abriga o Museu Mariano Procópio, o primeiro museu implantado em Minas, em 1915, por Alfredo Ferreira Lage, também foi entregue, com as imponentes pinturas parietais restauradas. Ambas as obras de restauração devolveram às edificações, através das pinturas, a imponência ornamental.

Imóveis setecentistas foram recuperados e adaptados em Tiradentes e se tornaram referências de bom gosto e de boa comida, como os restaurantes Tragaluz e Theatro da Villa. Ainda temos o exemplo positivo de Ritápolis, o Saliya Restaurante, que por sua boa cozinha e ambiente bem cuidado de uma casa antiga, conquistou clientela cativa; e o casarão onde viveu o pintor Manoel da Costa Ataíde, que após a restauração, passou a abrigar o elegante Restaurante Bené da Flauta, em Ouro Preto.

O Palacete das Águias merece projeto cuidadoso de restauração artística, para que suas pinturas parietais sejam recuperadas; quem sabe a edificação poderia ser um restaurante e ainda nos propiciar outras experiências. Tudo ali é memória e ao ser indagado, pode nos contar histórias da antiga Oliveira e seus tempos áureos da cultura cafeeira.

 

Aspecto da cerimônia de levantamento dos mastros dos padroeiros, Reinado de

 Nossa Senhora do Rosário, Oliveira-MG. Fotografia: João Belo. Disponível em: @oliveiraemfoco.

 

 

 Reinado de São Benedito – Reinado de Nossa Senhora do Rosário,

Oliveira-MG. Fotografia: Walquir Avelar.

     


Aspectos da cerimônia de levantamento dos mastros dos padroeiros,

Reinado de Nossa Senhora do Rosário, Oliveira-MG. Fotografias: João Belo.

Disponível em: @oliveiraemfoco.

 

 

Boi do Rosário - Reinado de Nossa Senhora do Rosário, Oliveira-MG. Fotografia: Marcelo Praxedes, Gazeta de Minas, nº 3.763, de 10 de nov. de 2023.


Nem rococó, muito menos barroco, os encantamentos desta cidade são outros, talvez por isso tenha perdido tantos casarões imponentes e memoráveis, por falta de compreensão do que é realmente um bem “patrimoniavel”. Agora, todos esforços precisam ser direcionados para a salvaguarda das edificações subsistentes, inclusive o Palacete das Águias. Proprietários, técnicos, artistas, historiadores, professores, imprensa, autoridades municipais, CODEMPAC, IEPHA e Ministério Público Estadual – todos devem envidar esforços para que o conjunto arquitetônico de Oliveira seja preservado e continue a ser o palco ideal para tantas manifestações culturais desenvolvidas pelo povo oliveirense, que sabe fazer bonito e com muita identidade.

Luiz Antonio da Cruz


Agradecimentos: Ricardo Ribeiro Resende, Colúmbia Ribeiro Martins, João Belo, Walquir Avelar, Thonnynho Barcellos, Luiz Augusto Vetore Naves, Márcio Almeida, Marcelo Praxedes e Gazeta de Minas.

 Referências

ALMEIDA, Márcio., RIBEIRO, João Bosco. (et al.). História Contemporânea de Oliveira. Oliveira: Editora Gazeta de Minas, 2011.

ALMEIDA, Márcio., Vargas, Amanda. Cultura de Oliveira. Oliveira: Editora Gazeta de Minas, 2022.

CRUZ, Luiz Antonio da. A Casa Padre Toledo no cotidiano e na monumentalização. Dissertação de mestrado. Belo Horizonte: Escola de Arquitetura, UFMG, 2015. [mímeo].

Guia dos Bens Tombados. IEPHA – Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico. Belo Horizonte: 2014, 2 v.

ALBERTI, Leon Battista. Da Arte de Construir. São Paulo: Hedra, 2012.

LARANJO, Heraldo. Mistério & Fantasia – No universo barroco da paixão e da folia. Oliveira: Editora Martins CI & P, 2022.

LARANJO, Heraldo. Turma do Zeca cainaquinha. Oliveira: Editora Martins CI & P, 2022.

 

 

 

Comentários

  1. Maravilha de pesquisa/crônica. Parabéns, Luis!

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    1. Muito obrigado pela presença aqui e pelo registro. Oliveira é sempre surpreendente e nos possibilita pesquisas diversas. Abraço

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  2. Que maravilha de texto e que riqueza de informações. Luiz Cruz é um estudioso e importante historiador, que tem enorme carinho pelo patrimônio e se dedica a registrar fatos essenciais para que possamos conhecer e admirar o que nos cerca. É um prazer tê-lo como amigo de Oliveira e contar com sua presença ilustre em nossa cidade. Parabéns e muito obrigado, Luiz!

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    1. Muito obrigado amigo. Oliveira é detentora de expressivo Patrimônio Cultural, mas a força, a grande potência é o Patrimônio Humano. Por isso, tudo que ocorre na cidade nos impacta, nos emociona. Vocês oliveirenses merecem muitos reconhecimentos e muitos aplausos. Abraço e gratidão pela nossa amizade.

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  3. PARABÉNS PELA RIQUEZA DA PESQUISA QUE NORTEIA OS ESTUDOS PARA O CONHECIMENTO HISTÓRICO E SOCIOCULTURAL E PERTENCIMENTO DE NOSSA IDENTIDADE. GRANDE ABRAÇO !!!

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    1. Muito obrigado pela presença aqui e pelo registro. As publicações impecáveis sobre Oliveira nos ajudam muito e tornaram-se grandes facilitadoras. Meus amigos me enviam as obras, leio e estudo todas com bastante atenção e prazer. Gratidão abraço

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  4. Parabéns pelo registro sobre nossa Oliveira. Valorização de nosso patrimônio material e cultural

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    1. Muito obrigado pela presença aqui e pelo comentário. Isso é importante e gratificante. Escrever e publicar sobre Oliveira é sempre um enorme prazer. O patrimônio Material e o patrimônio Imaterial da cidade sempre foram fortes e ainda terão muitos reconhecimentos. Abraço

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  5. Que riqueza de detalhes e que maravilha de história. Uma verdadeira aula! Como sempre, você nos presenteia com tantas informações.
    Parabéns!
    Um abraço da Thelma

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    1. Amiga Thelma. Muito obrigado por sua presença aqui. É muito bacana ter uma tiradentina acompanhando e registrando sobre nosso trabalho. Gratidão e abraço afetuoso para você.

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