Tiradentes:
Paisagem mutilada
e descaracterizada
As novas obras implantadas no coração do núcleo antigo de Tiradentes são comprometedoras. Na Rua do Chafariz, há uma casa que pertenceu ao casal João Gonçalves Chaves e Anízia Rabelo Chaves, ele era tiradentino, engenheiro civil e quando se casou com Dona Anízia, ela era muito jovem, viúva e já com dois filhos: João Rabelo e Romeu Rabelo. O velho Chaves foi irmão de Dona Antônia Chaves – matriarca de núcleo familiar numeroso; ele era o avô que todos conheceram e conviveram. Seu filho Romeu Rabelo se casou com Dona Maria Tereza Rabelo e tiveram onze filhos. Os Rabelo passavam as férias nesta casa e os rapazes tiveram namoradas na cidade. O filho Luiz se casou com Sônia Lima Barbosa e Romeu se casou com Thelma Nascimento. O casal Romeu e Thelma tiveram dois filhos, um deles o Romeuzinho, que iniciou os estudos musicais na gloriosa Orquestra e Banda Ramalho, é musicista, compositor, arranjador e fagotista da Osesp – Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo e atualmente doutorando em Musicologia, na USP. Essa era uma casa toda original do século XVIII, impregnada de máculas do tempo, muitas memórias e instalada num vasto terreno.
A
primeira casa à esquerda pertenceu ao casal João Chaves e Anízia Rabelo Chaves.
Rua do Chafariz, Tiradentes-MG. Fotografia: Luiz Cruz, década de 1980.
Posteriormente,
o imóvel abrigou a Casa de Gravura Largo do Ó, tinha a testada para este
logradouro e a Rua do Chafariz, em amplo terreno que dava fundos para a Rua da
Cadeia. A empresa que fazia a gestão da Casa de Gravura era a OLHO D’ÁGUA
PRODUÇÕES ARTÍSTICAS LTDA – este nome surgiu ao considerar que no amplo imóvel
havia um olho d’água, uma nascente perenal; ou seja, permanente durante todo o
ano. A água nascia no meio do terreno, seguia por um córrego, atravessava a Rua
da Praia, caia no Córrego do Pacu, este que encontra o Ribeiro Santo Antônio e
deságua no Rio das Mortes. Os tempos da Casa de Gravura foram de generosidade,
não somente para as artes visuais, mas para todos que iam lá buscar verduras e
legumes da horta regada com água pura e cristalina do Olho D’Água. O jardim cresceu,
ganhou muitas plantas, árvores e abrigou exposições de esculturas, ele foi tema
de obras de alguns artistas, como Inimá de Paula e Roberto Vieira.
Inimá
de Paula pintando no jardim da Casa de Gravura.
Fotografia: acervo do Instituto Cultural Biblioteca do Ó, década de 1990.
Depois,
o terreno teve desmembramento em duas unidades, parte a integrar a casa da Rua
do Chafariz com o Largo do Ó e a outra o remanescente da área; a seguir o uso e
ocupação da área central, a testada – frente e sua largura, dão para a Rua do
Chafariz. Então, na obra em andamento, surgiram blocos iguais e um deles sobre
o Olho D’Água. É uma ocupação estranha
ao núcleo arquitetônico antigo da cidade. No que podemos observar, não há
beleza e nem fealdade nestes módulos. Há apenas um incômodo ao olhar de quem
aprecia a boa arquitetura. Não existe possibilidade de diálogo com o conjunto
predominado pela arquitetura vernacular, implantada dentro dos princípios do
decoro e da formosura, cultivados pelos ensinamentos vitruvianos e reforçados pelo
tratado arquitetônico de Alberti, para cá transplantados pelos portugueses.
Obra no terreno do Olho D’Água, com testada para a Rua do Chafariz,
vista da Rua da Praia, atual Ministro Gabriel Passos. Tiradentes-MG. Fotografia: Luiz Cruz.
Obra no terreno do Olho D’Água, com testada para a Rua do Chafariz, na atual
Ministro Gabriel Passos, vista do Alto de São Francisco. Tiradentes-MG. Fotografia: Luiz Cruz.
Até pode ser um projeto rigorosamente a cumprir as normas e os instrumentos, mas para as novas edificações a serem implantadas no centro antigo de Tiradentes, todo cuidado é pouco. Mesmo ao considerar as cartas patrimoniais – a de Veneza já é sexagenária – 1964/2024, acaba de completar 60 anos. Por isso, há que se valer de um tripé: um pé no passado, um no presente e outro no futuro. O bom senso deve primar e nos alertar que estas inserções estão em conjunto primoroso, único e protegido desde 1938. Para pensar em novas edificações para esta cidade, torna-se fundamental uma imersão na obra e pensamento de alguns autores, como Sylvio de Vasconcellos, Lucio Costa, Carlos Lemos, José Wasth Rodrigues e tantos outros. Como nos alertava Vasconcellos, arquitetura é muito além do quadrado e do retângulo. É necessário considerar a ambiência, as técnicas construtivas e o modus operandis da arquitetura colonial brasileira, que congrega tantas experiências de povos antigos, distintos e longínquos.
O núcleo arquitetônico, urbanístico e paisagístico de Tiradentes visto do Alto de São Francisco.
Fotografia: Luiz Cruz.
Recentemente, recebemos um grupo de arquitetos do eixo SP/RJ e eles ficaram chocados com as novas edificações implantadas na cidade, a reproduzir exemplares de revistas e até mesmo soluções praieiras à moda de “Búzios”. Então, seria mais pertinente deixar esses estilos modernosos para as áreas novas, para os condomínios. E para assegurar a nossa Paisagem, poderia se implantar imediatamente um cinturão verde a minimizar o impacto visual. Paisagem também é Patrimônio coletivo e deve receber atenção e cuidados.
Muro
com embasamento de pedra seca, adobe e telha, terreno Olho D’Água,
com testada para a Rua do Chafariz, Tiradentes-MG. Fotografia: Luiz Cruz.
Com
criatividade e boa vontade política para enfrentar os problemas, há solução
para tudo. No caso da obra no terreno do Olho D’Água, seria fundamental
restaurar devidamente o muro de adobe coberto por telha, atrás dele plantar
arbustos como a quaresmeira, manacá da serra, ipê mirim e outros, ainda,
trepadeiras como o cipó de São João e a madressilva, na tentativa de minimizar
o impacto visual daquilo.
E como
temos que pensar no futuro, seria ótimo que chegasse alguém com certa condição
financeira, mas com número considerável de neurônios, sensibilidade e consciência
para adquirir tal propriedade e executar a demolição de pelo menos do bloco que
está sobre o Olho D’Água. Em tempos de aquecimento global e a cidade com tantos
poços artesianos, concretar uma nascente é um impropério. Quem sabe, num futuro
o Olho D’Água venha ser uma charmosa fonte ou imponente espelho d’água.
Tiradentes é encantadora, seu conjunto arquitetônico é primoroso e merecia esta
delicadeza.
Luiz Antonio
da Cruz
Agradecimentos: Thelma Nascimento, Maria José Boaventura e Instituto Cultural Biblioteca do Ó
Infelizmente o "show" não pode parar ! E Tiradentes está caminhando para tornar-se uma Disneylandia barroca !
ResponderExcluirObrigado pela presença no Blog. Os novos adjetivos para uma cidade tão encantadora como Tiradentes não são positivos, mas nada tem sensibilizado nossas autoridades. E tudo segue por avançado processo de descaracterização. Abraço
ExcluirMuito pertinente a postagem. OURO preto
ResponderExcluirEduardo Sales, obrigado por sua presença e registro. Compreendemos a relevância do nosso Patrimônio e podemos contribuir para novos rumos e evitar a devastação. Só precisamos ser ouvidos. Abraço
ExcluirOuro Preto passou por essa situação.Todo cuidado é pouco !
ResponderExcluirOuro Preto perdeu muito. Porém, no momento a cidade setecentista brasileira mais ameaçada é Tiradentes. Aqui a especulação imobiliária é selvagem e a autoridades sem força. Abraço
ExcluirParabéns pelo texto lúcido luiz Cruz. Enquanto eu lia sobre plantar árvores e arbustos nativos no terreno, me imaginei andando por entre as árvores numa tarde quente de Tiradentes, e encontrando a tal bica d'água, e talvez uns miquinhos sobre as árvores, curiosos a espera de petiscos. Seria muito inspirador.
ResponderExcluirMuito obrigado. Então, bem no coração da cidade, este lindo terreno poderia ser um refúgio para tantos exemplares da nossa fauna. A água é VIDA e atrai VIDA. Na atual circunstância concretar um nascente é um CRIME AMBIENTAL. Abraço
ExcluirParabéns pela coragem em denunciar esse absurdo de construção que em nada dialoga com a arquitetura histórica de Tiradentes.
ResponderExcluirMuito obrigado, alguém precisava tomar tal providência. As nova edificações do centro antigo de Tiradentes não dialogam com nada. Estão se esforçando para descaracterizar nossa cidade que é um Patrimônio Nacional. Abraço
ExcluirA morte de um olho d’água é muito preocupante e triste. 🥲
ResponderExcluir(Thelma)
Thelma, obrigado por sua contribuição para a construção do texto. Humanizar é muito importante para uma cidade como Tiradentes no momento. A água no entorno da Serra de São José diminui a cada ano, a Cachoeira do Carteiro secou, a Cachoeira do Bom Despacho está praticamente seca, no Córrego do Mangue corre um filete mínimo de água - enquanto isso concretaram uma NASCENTE - isso é um crime ambiental. Abraço
ExcluirEm Paraty está acontecendo a mesma coisa. O IPHAN autoriza contruções no centro do terreno, mantendo uma certa distância do muro de frente para a rua, mas a contrução interna , nova, tem que exibir um telhado com telhas canais, e ter suas frentes densamente arborizadas. Mas nem sempre esta solução éa ideal, como neste caso de Tiradentes. Diuner Mello - Paraty
ResponderExcluirDiuner Mello, amigo querido da nossa encantadora Paraty, cidade Patrimônio e que passa por problemas similares aos nossos aqui em Tiradentes. Todos os instrumentos são importantes, mas devem ser aplicados caso a caso, a prevalecer o bom senso. Esconder edificações com cortinas verdes é uma solução para minimizar, mas não o ideal. O afastamento das edificações da testada dos terrenos cria uma situação atípica do nosso urbanismo e contribui para a descaracterização. É tudo complexo, mas com boa vontade, orientação, imparcialidade, monitoramento e fiscalização, tudo pode ter solução mais adequada e consequentemente assegurar a conservação das nossas cidades mais antigas. Vivemos do turismo e para tal a Proteção Patrimonial é elementar.
ExcluirProfessor, o neoliberalismo em Tiradentes chega a passar da conta. É como se os antigos barões da cidade, donos das casas-grandes continuassem a perpetuar uma infinidade de mandos e desmandos...a luta continua.
ResponderExcluirRogério Lazur, obrigado por sua presença aqui no nosso blog. É muito grave a situação da nossa amada Tiradentes. Além dos antigos pseudos barões, a cidade recebe gente sensível a admirar nosso potencial, mas recebemos também pessoas especuladoras, que têm os olhos maiores que a alma. Tudo gira em torno dos $$$, aqui chegam para fazer a multiplicação dos $$$. Com um conjunto de autoridades fracas, fica muito complexa a defesa deste Patrimônio Nacional, protegido desde 1938. Graças à especulação imobilária, Tiradentes é das cidades antigas mais ameaçadas do Brasil. Parabéns para você, que é um dos raros tiradentinos que se manifestam publicamente em defesa do nosso Patrimônio. Abraço.
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