OLIVEIRA – FESTA DO CONGO: PATRIMÔNIO IMATERIAL

 

A alegria da libertação. O meu Terno dança o significado de andar na peia,

dançando mais o corpo, fazendo que vai mas não vai. É a alegria da

libertação e a recordação do modo como andava o peiado que eram

 os escravos. É também a lembrança da Santa que apareceu.

            

                                      Leonídio João dos Santos (PONTES, 2003, p. 23).




 

1754 é a referência mais antiga de Oliveira e já em 1758 aparece notícia da existência de uma Capela de Nossa Senhora de Oliveira, “na paragem do Campo Grande.” Frei José da Santíssima Trindade registrou:

[...] de pedra, com duas torres, e os portais e o presbitério de pedra mármore e as torres por acabar... No mesmo arraial, fazendo frente à capela, tem a de N.S. do Rosário, acabada de próximo e, perto da subida, tem uma ermida do Senhor dos Passos [...]. (BARBOSA, 1995, p. 226-228).

Nossa Senhora de Oliveira é uma das inúmeras devoções à Senhora trazida pelos portugueses e geralmente era em torno das capelas devocionais que se instalavam os arraiais. Durante quase todo o século XVIII, o termo da Comarca do Rio das Mortes foi composto pelas duas vilas irmãs, São José e São João, e se estendia pela região sul da capitania. Esse arraial teve elevação à categoria de freguesia a 14 de julho de 1832. A lei provincial Nº 134, de 16 de março de 1939, elevou o arraial à categoria de vila, com a denominação de Nossa Senhora de Oliveira; já a lei provincial Nº 1102, de 19 de setembro de 1861, a promoveu a cidade. Seu território resultou de desmembramento de São José del-Rei, a atual Tiradentes, ou seja, toda história da localidade sempre esteve vinculada à essa vila setecentista e, claro, com seus personagens, inclusive o Padre Carlos Correia Toledo e Melo (1731-1803), o líder inconfidente da Comarca do Rio das Mortes e Inácio Correia Pamplona (1731-1810), um dos denunciadores da Conjuração Mineira e dos mais severos mestres-de-campo que combateu os indígenas organizados e os povos quilombolas:

Sua tropa percorreu o Centro-oeste do atual Estado por quatro meses com o objetivo de reprimir e destruir quilombos, assim como delimitar e conceder sesmarias a habitantes livres, por ele selecionados. (LIMA, 2016, p. 236).

 

         

Raro registro da Capela de N. Senhora do Rosário dos Homens Pretos, de Oliveira. Acervo arquiteto

Heraldo Laranjo. Fachada da Catedral de Nossa Senhora de Oliveira. Fotografia: Luiz Cruz.

 

A devoção a Senhora do Rosário sempre esteve vinculada à população de origem afro-brasileira e é muito forte na cidade de Oliveira. O Reinado de Nossa Senhora do Rosário, ou Festa do Congo é a principal da localidade e ocorre no mês de setembro. Essa manifestação religiosa surgiu por volta de 1839, realizada nas igrejas Dos Passos e do Rosário. “Com esta última, o Reinado, com a organização da Irmandade Africana, cuja capelinha vai desempenhar também o seu papel saliente na história local”. No Rol dos Confessados desta Freguesia de S. Antonio da Villa de S. Jozé, Comarca do Rio das Mortes deste presente anno de 1795, aparecem dados populacionais de Oliveira, pelo fato da localidade compor o termo dessa vila. De maneira geral,

O Rol fez menção de 21 identidades africanas, algumas bem específicas, mas a maioria escravizada foi rotulada como pertencente a agrupamento genérico, tais como angola, benguela, cabinda, congo e mina. Escravos oriundos da África Ocidental predominavam por uma ampla margem. (LIBBY, 2020, p.113).

Nesse precioso documento de 1795, um dos mais completos subsistentes em Minas, registrou-se sobre “Nossa Senhora de Oliveira” os seguintes dados populacionais: Fogos (casas) – 224, Pessoas – 1713, Maiores – 1351, Menores – 351, Crismados – 1237, Ausentes – 11; sendo:  Livres – 941, Escrava – 772, Total – 1713, com 45,1% da população escravizada. Enquanto nas Listas nominativas de 1831, do Arquivo Público Mineiro, Seção Provincial, anotou-se de Oliveira, sobre os seus habitantes: Livres – 1633, Escrava – 1109, Total – 2742, com total escravizada de 40,4% da população. Dos totais, exclui crianças com menos de sete anos de idade. (LIBBY, 2020, p.115).


         

Rol dos Confessados desta Freguesia de S. Antonio da Villa de S. Jozé, Comarca do Rio das Mortes deste presente anno de 1795, documento que registra dados populacionais de Oliveira. Acervo IHGT – Instituto Histórico e Geográfico de Tiradentes.

 

Já em 1881, registrou-se:

[...] sobre um total de 26.213 habitantes, possuía o município 6.883 escravos e, em novembro de 1887, do total de 4.017 cativos, havia 2.231 homens e 1.786 mulheres, número reduzido às vésperas da Abolição [...]. (ALMEIDA, 2011, p. 449).   

Com população descende de inúmeros escravizados, Oliveira atravessou os tempos com seus habitantes que se vangloriam de suas origens e promovem um dos mais expressivos reinados dedicados a Senhora do Rosário.

Infelizmente, a Capela de Nossa Senhora do Rosário foi demolida para no local se edificar a Catedral Basílica de Nossa Senhora de Oliveira, com obra iniciada em 1929 e concluída apenas em 1985. Foi nessa Basílica que ocorreu o encontro dos ternos para o último dia do Reinado de Nossa Senhora do Rosário e em seguida a procissão dos padroeiros dos congados: Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora das Mercês, Nossa Senhora Aparecida, Santa Efigênia e São Benedito. Cada guarda levou o andor de seu padroeiro e o cortejo foi acompanhado pelo padre Roberto Carlos de Almeida, além da representação da Princesa Isabel, que neste ano foi eleita a simpática e elegante Vitória Carvalho Nascimento.




Reinado de Nossa Senhora do Rosário, andores de Nossa Senhora das Mercês e Nossa Senhora do Rosário, Oliveira, 2022. Fotografia: Luiz Cruz.

 

Não há como destacar que toda cerimônia transcorre de forma organizada, cada terno ocupou o seu espaço e tudo se desenvolveu conforme a tradição. A catedral estava preparada para tal e limpíssima. Os tambores ressoam na edificação e os congadeiros saíram com os seus padroeiros, percorreram a Praça XV e retornaram, tudo devidamente seguido pelo padre Roberto Carlos de Almeida.


                    

Reinado de Nossa Senhora do Rosário, Terno de São Benedito, Oliveira, 2022. Fotografia: Luiz Cruz.


Os ternos voltaram para a Praça XV e se posicionaram em frente aos mastros com suas respectivas bandeiras. Cada um fez o arreamento de seu mastro, ao descer a pesada peça de madeira, os presentes fazem suas preces e acenam para o padroeiro. São momentos de forte emoção, que tocam o coração de todos, idosos, adultos, adolescentes e até mesmo dos pequenos, porque tudo é movido a força e muita fé. Após a descida da bandeira, os reis e rainhas beijam e se benzem diante ela. A Princesa Isabel também se curva diante de cada bandeira do padroeiro.




Reinado de Nossa Senhora do Rosário, cerimônia de arreamento dos mastros, Oliveira, 2022. Fotografias: Luiz Cruz.

 

 

 

Reinado de N. S. do Rosário, bandeiras dos padroeiros, Oliveira, 2022. Fotografias: Luiz Cruz.

 

                              

Reinado de Nossa Senhora do Rosário, Princesa Isabel a reverenciar bandeira de padroeiro, Oliveira, 2022. Fotografia: Luiz Cruz.

                          

Reinado de Nossa Senhora do Rosário, mastros das bandeiras dos padroeiros, Oliveira, 2022. Fotografias: Luiz Cruz.

A Praça XV ficou superlotada com o povo da cidade e seus visitantes. É impressionante a presença de jovens e até mesmo das crianças que acompanham os pais e os avós. Isso nos prova que o congado afinca suas raízes e renova as energias para manter a tradição.

 

   

Reinado de Nossa Senhora do Rosário, crianças participantes da festa, Oliveira, 2022. Fotografias: Luiz Cruz.

 

Tivemos sorte de sermos recebidos por nosso querido amigo Walquir Avelar, que nos apresentou alguns aspectos da cidade e nos levou até o Quartel do Terno de Nossa Senhora das Mercês, dos capitães de Moçambique Antônio Eustáquio dos Santos e Pedrina Lourdes dos Santos. Todos já se preparavam para as cerimônias, mesmo assim, tivemos privilégio de poder conhecer o Quartel. Na sala, há uma fotografia o congadeiro Leonídio João dos Santos (1908-1981), homem da maior relevância para a manutenção do Reinado de Nossa Senhora do Rosário de Oliveira. Ele que aprendera com os seus pais, avós e outros capitães o

dialeto africano, ou seja, a língua falada pelos pretos escravos. Dessa maneira, sabia e falava nessa língua – o Quimbundo da nação Banto de Angola, África e o Gêge e entoava seus cantos em louvor à Nossa Senhora, aos santos padroeiros e em memória de seus antepassados. (PONTES, 2003, p.10).

Então, foi com seu pai, o Capitão Leonídio, que a Capitã Pedrina e o Capitão Antônio aprenderam o dialeto, no qual cantam a homenagear a Senhora do Rosário e os outros padroeiros dos congadeiros. Esses personagens e tantas outras histórias enriquecem o tradicional Reinado do Rosário, que têm diversos registros na Gazeta de Minas, o jornal local, que circula desde 1887 e atualmente é o mais antigo de Minas Gerais. Em sua edição número 57, de 1888, noticiou a Festa do Congo, mas a Irmandade do Rosário já existia a partir de 1813 e seus estatutos datam de 1860. (PONTES, 2003, p.9).


                              

O Capitão Leonídio João dos Santos, Quartel do Terno de Nossa Senhora das Mercês. Fotografia: acervo da família.

 

                  

Aspecto do Quartel do Terno de Nossa Senhora das Mercês. Fotografia: Luiz Cruz.

 

Em tempos de obscuridade intelectual e de desgoverno, a edição número 3.711, de 11 de setembro de 2022, a Gazeta de Minas trouxe uma matéria preocupante, mas sobretudo triste: Violência interrompe desfile do Boi do Rosário – Insegurança, vandalismo e suspeita de armas atingem tradição cultural:

O histórico cortejo cultural conhecido como “Boi do Rosário”, que anuncia a Festa do Congado de Oliveira, foi interrompido pela organização do evento na noite de sábado (3), sob alegação de insegurança para o público participante e atos de violência e vandalismo contra a alegoria, seus condutores e caixeiros. O desfile, que deveria ir até o Alto São Sebastião, foi dissolvido na Praça Doutor José Ribeiro da Silva pelo capitão-mor Geraldo Bispo dos Santos Neto, retornando à Casa do Congadeiro sem o toque das caixas. (GAZETA DE MINAS, 11 DE SETEMBRO DE 2022, p.1).

A matéria continuou na página 7 e destacou que esse fato manchou a história de umas das manifestações mais antiga da cidade, quando os carregadores do boi foram agredidos com rasteiras, caíram e se feriram. “Por diversas vezes, pessoas tentaram derrubar o Boi e em algumas conseguiram com empurrões”. Enquanto o Capitão-mor  Geraldo Bispo interrompeu o cortejo do “Boi”, milhares de pessoas aguardavam por sua passagem, especialmente pelo fato de não ter ocorrido nos últimos dois anos em decorrência da pandemia da Covid-19. Ainda nessa edição, em seu Editorial, sob o título Tumores profundos – episódios de violência no cortejo do Boi do Rosário mostram alto grau de degeneração social. Com texto impecável, analisa os fatos e destaca que:

O que ocorreu no cortejo do Boi do Rosário deste ano é, em resumo, consequência das mazelas sociais que muitas vezes tentamos ignorar e teimamos em não enxergar, embora óbvias, por difíceis e dolorosas ou por simples negligência. (GAZETA, 11 DE SETEMBRO DE 2022, p.2).

Além da ampla divulgação pela Gazeta de Minas, os fatos pejorativos ganharam repercussão nas redes sociais. Uma das manifestações mais expressivas de Minas Gerais, agora em processo de registro como Patrimônio Nacional, precisa ser respeitada, sobretudo em Oliveira. Nessa cidade, tudo sempre transcorreu de maneira respeitosa e seguiu a tradição, tudo envolveu inúmeras famílias antigas e intermináveis descendentes.

                   

Reinado de Nossa Senhora do Rosário, Padre Roberto Carlos de Almeida acompanhando a Procissão dos Padroeiros. Oliveira, 2022. Fotografia: Luiz Cruz.

 

O Reinado do Rosário de Nossa Senhora de Oliveira, a Festa Conga e o Boi do Rosário conformam uma manifestação que espelha a história, a cultura e a identidade do povo da cidade de Oliveira. Não é somente de Oliveira, essas manifestações são Patrimônio de Minas Gerais e em breve terá registro como Patrimônio Nacional – e muito merecido!

Muitos parabéns a todos que tanto trabalharam para que a festa fosse realizada neste ano e a superar os tempos difíceis do isolamento social, além das atitudes das mentes turvas e cruéis. Porém, todos congadeiros brilharam na certeza de que os padroeiros a Senhora do Rosário, a Senhora Aparecida, a Senhoras das Mercês, São Benedito e Santa Efigênia ficaram felizes com tanta expressividade, com tanta força e tanta fé. Muitas bênçãos e parabéns para todos congadeiros e para o povo oliveirense que foi para as ruas e praças prestigiar e apoiar o Reinado de Nossa Senhora do Rosário. Não podemos deixar de parabenizar a Gazeta de Minas por tornar público e analisar os acontecimentos de vandalismo; assim esclareceu e facilitou o trabalho investigativo por parte das autoridades competentes.


                  


Reinado de Nossa Senhora do Rosário, retorno dos ternos à Catedral. Oliveira, 2022. Fotografia: Luiz Cruz.

Rogamos para que 2023 o Brasil entre na normalidade e todos voltem a respeitar a cultura e a religiosidade do povo; rogamos para que os congadeiros de Oliveira se mantenham firmes na fé e nada melhor que a cantiga do velho e sábio Capitão Leonídio João dos Santos:


                                               Beija-fulô

Toma conta do jardim

Beija-fulô

Toma conta do jardim.

Vou pedir Nossa Senhora

Pra tomar conta de mim. (PONTES, 2003, p.27).

 

 

E, Salve o Rosário, Salve Maria.


Luiz Antonio da Cruz

 

 

Referências:

ALMEIDA, Márcio.; RIBEIRO, João Bosco. História Contemporânea de Oliveira. Oliveira: Editora Gazeta de Minas, 2011.

BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário histórico Geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte, Rio de Janeiro: Editora Itatiaia, 1995.

GAZETA DE MINAS. Ano CXXXVI, Nº 3.711, Oliveira, 11 de setembro de 2022.

LIBBY, Douglas Cole. Nos limites de seu estado – a vida familiar, rumos econômicos e jogos identitários (São José do Rio das Mortes, séculos XVIII e XIX). Belo Horizonte: Odisseia, Miguilim, 2020.

LIMA, Pablo Luiz de Oliveira. Marca de fogo: quilombos, resistência e a política do medo – Minas Gerais – Século XVIII. Belo Horizonte: Nandyala, 2016.

PONTES, Hugo. O Congado em Oliveira – Tributo da Leonídio João dos Santos. Poços de Caldas: Sulminas, 2003.

Rol dos Confessados desta Freguesia de S. Antonio da Villa de S. Jozé, Comarca do Rio das Mortes deste presente anno de 1795. Acervo: Instituto Histórico e Geográfico de Tiradentes.

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