Esmoleiros do Brasil:
entre
a ação caritativa, a devoção,
o
fazer, a arte e a cultura
Óleo que benze e protege
Água que lava e batiza
Fogo que purifica e ilumina:
A poesia divina envolve em incenso e
névoa
aquilo que é simples, delicado
e ao humano do homem ofertado.
Carlos Antônio
Leite Brandão (Museu da Liturgia – Tiradentes-MG)
Caixa esmoleira, madeira policromada, séculos XVIII/XIX. Acervo Ângela Gutierrez. Fotografia: Luiz Cruz.
A
exposição Deus lhe Pague – esmoleiros do barroco brasileiro ocorre no
Museu de Sant’Ana, em Tiradentes-MG. Trata-se de oportunidade ímpar para se
conhecer um acervo precioso e raro, mostrado pela primeira vez no Brasil. São
32 esmoleiros oriundos de Bahia, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais e São Paulo –
da pequena caixinha de mesa para receber a moeda, às caixas de arruar, aos
grandes baús e às mesas coletoras, construídos em madeira, ferro, folha de
flandres, certos entalhados, policromados e com as devoções identificadas,
outros despojados de ornamentação. O conjunto é da Coleção Angela Gutierrez e
estará exposto até o final de janeiro de 2024. A própria colecionadora assina a
curadoria, apresentação e projeto museográfico, o texto é de Angelo Oswaldo de Araújo
Santos, a montagem ficou a cargo de Adriano Ramos, Agnaldo Borges de Pinho e
Lázaro Oliveira, o projeto gráfico do catálogo é de Angela Dourado – tudo
impecável, digno de figurar dentre as melhores exposições brasileiras de 2023.
Esmola,
esmolar, esmolaria, esmoleiro, esmoler – são palavras vinculadas às ações
caritativas; ou seja, da “caridade” e acentuadamente às afinidades da
religiosidade, das devoções específicas, do reconhecimento e da recompensa para
a vida eterna. Tudo isso veio mais forçadamente a partir dos séculos XV e XVI,
com a difusão dos “novíssimo bíblicos”: a morte, o juízo, o inferno e o
paraíso. “A iconografia do Purgatório chegou tardiamente às artes figurativas,
alojando-se no interior de composições do Juízo Final, para depois alcançar
lugar próprio e autonomia” (CAMPOS, 2013, p.74). No período do catolicismo
Barroco, a alma seguiria uma trajetória que poderia chegar à três locus
distintos: o Paraíso – a eternidade celestial, o Purgatório – o intermediário, o
Inferno – o irreversível / irrevogável. A ação caritativa podia ser uma das
maneiras para amenizar o peso dos pecados através:
do arrependimento e as
reparações, convertidas em doações testamentárias para as ordens religiosas,
confrarias, pobres, órfãos, dote para donzelas, alforria de escravos e a
solicitação de expressivo montante de missas em sufrágio por almas de parentes
e cativos [...]. (CAMPOS, 2007, p.388).
No
período Barroco, a consciência do cristão se tornou elementar para a
autoavaliação e se preparar para o “agora e na hora da nossa morte, amém”. As
almas pecadoras vislumbravam pelo menos o Purgatório e para alcançá-lo, seria
necessário a prática de ações edificantes. Salvar a alma era o grande desafio
daqueles tempos e em geral a alma pecadora iria para o Purgatório, para a
purificação ou redenção de certos pecados acumulados ou esquecidos ao longo dos
tempos.
O fogo
do Inferno era o fogo eterno, que queimava sem destruir, sem purificar e causava
dores profundas, diferentemente do fogo do Purgatório – locus intermediário
entre o paraíso e o inferno. Este seria o fogo da purificação para aqueles que
manifestaram arrependimentos de seus pecados, para se redimir e obter a
ascensão ao patamar superior, o Paraíso. Era o fogo sagrado a propiciar a
punição, mas também a purificação, o rejuvenescimento e a imortalidade do
remido.
Nas
Minas do período colonial, onde as ordens religiosas foram proibidas de se
instalar, coube, então, às irmandades a “gestão” da sociedade em agremiações.
Muitas delas construíram seus templos próprios para o culto de devoções
específicas. As irmandades se organizavam para esmolar e com os recursos ajudar
nas obras de construção, ornamentação e manutenção de suas igrejas. Segundo a
historiadora Maria Clara Caldas Ferreira, cada agremiação tinha permissão para
pedir esmola, geralmente tinha um dia predefinido para essa arrecadação. Elas
esmolavam principalmente nos períodos de festas dos padroeiros.
A mais
antiga Irmandade de São Miguel e Almas da Capitania de Minas Gerais é a da
Freguesia de Nossa Senhora do Pilar, de Vila Rica e data de 1712 (ver o quadro
das irmandades). Ela foi instituída em diversas localidades e construíram seus
retábulos nas matrizes ou capelas. Existiram irmandades das Almas e irmandades
de São Miguel e Almas – sendo que algumas ainda subsistem e mantém seus
estatutos, retábulos, celebrações e festejos. Para a irmandade de São Miguel e
Almas se reservavam as segundas-feiras para a celebração de missas e a reza de
terços. São Miguel é sincretizado nas religiões de matriz afro-brasileira como
Exu (em iorubá Èṣù) – o orixá da comunicação e
da linguagem, a atuar como o mensageiro entre os humanos e as divindades,
equivale-se a Mercúrio. Exu é dono dos caminhos, da ida e da volta; invocado,
ele limpa os caminhos. Seu dia é também a segunda-feira e sua saudação: Laroiê!
Capela de São Miguel e Almas, portada do Mestre Aleijadinho (1781-1790), Bairro Alto das Cabeças, Ouro Preto-MG. Fotografia de 1923, acervo do Museus Paulista da USP.
Na
obra considerada clássica do tema, Os leigos e o poder, do professor e
pesquisador Caio César Boschi, as irmandades que mais se popularizaram em Minas
foram as de Nossa Senhora do Rosário, Santíssimo Sacramento, Almas e São Miguel
e Almas (Boschi,1986, p.187). Em Vila Rica, no Alto das Cabeças, edificaram uma
capela a unir três devoções: os Santíssimos Corações de Jesus, Maria e José,
Bom Jesus de Matozinhos e São Miguel e Almas. Na portada desta edificação
encontramos uma das mais expressivas representações das Almas do Purgatório,
obra do mestre Antônio Francisco Lisboa (1737-1814). Esta é uma verdadeira obra-prima
da escultura mineira, em pedra sabão e contempla as três devoções citadas. Na
base, na sobreverga, aparecem três cabeças de anjos; acima, encontra-se a cena
das alminhas entre as chamas incandescentes – com representações distintas,
como um homem tonsurado – um clero, uma mulher com os cabelos compridos e
organizados – a luxúria, e outros. “O Purgatório representado por Antônio
Francisco Lisboa é um lugar onde as almas, encarnadas, penam sob as chamas
purificadoras e clamam ao santo pela subida rápida ao céu, elevando-lhe os
olhos e as mãos em súplica.” (JARDIM, 2006, p.79). No nicho está o São Miguel
alado, em vestes romanas, escudo e deveria ostentar espada ou lança, na cabeça o
elmo com penacho volumoso. Enquanto no remate do nicho se encontra a
representação dos Três Corações – o central a representar Cristo, com a chaga,
a coroa de espinhos e a cruz. A superpor a pequena sobreverga, figura o Divino
Espírito Santo, a iluminar e proteger toda a composição, finamente entalhada em
blocos pétreos. Vale ressaltar, aqui que em outras representações aparecem
elementos iconográficos distintos, como: o frade, a tonsura; o rei, a coroa; o
bispo, a mitra; o papa, a tiara; a meretriz, os cabelos longos e o corpo
sinuoso. (CAMPOS, 2013, p.66). A partir da representação e das informações,
constata-se que o mestre Aleijadinho atuava e realizava suas encomendas dentro
de preceitos de sua contemporaneidade.
Portada da Capela de São Miguel e Almas, obra do Mestre Aleijadinho. Alto das Cabeças, Ouro Preto-MG. Foto: Luiz Cruz, 2018.
Alminhas, detalhe da portada da Capela de São Miguel e Almas, obra do Mestre Aleijadinho. Alto das Cabeças, Ouro Preto-MG. Fotografia: Luiz Cruz, 2018.
Na
Matriz de Nossa Senhora do Pilar, de São João del-Rei-MG, no consistório da
Irmandade de São Miguel e Almas, o teto plano recebeu pintura ornamental, uma
trama de rocalhas assimétricas, solução típica do rococó, com arranjos florais
e ao centro cena com três alminhas e intensas chamas. A figura da esquerda é
uma jovem com cabelos longos e o braço a cobrir os seios, a do meio é um jovem
com as mãos postas e a da direita um ancião em súplica. Pelas soluções estruturais,
paleta, anatomia dos personagens e arranjos florais, essa pintura deve ser
atribuída ao professor de pintura Manoel Victor de Jesus.
Alminhas, obra atribuída ao professor de pintura Manoel Victor de Jesus, Consistório da Irmandade de São Miguel e Almas, Matriz de Nossa Senhora do Pilar, São João del-Rei-MG. Fotografia: Luiz Cruz, 2019.
Alminhas, detalhe da pintura atribuída ao professor de pintura Manoel Victor de Jesus, Consistório da Irmandade de São Miguel e Almas, Matriz de Nossa Senhora do Pilar, São João del-Rei-MG. Fotografia: Luiz Cruz, 2019.
Na
Capela da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, de Sabará-MG, no teto em
abóbada de berço da capela-mor, encontramos uma representação com as alminhas. Este
teto recebeu pintura estruturada com elementos arquitetônicos fingidos e ao centro
a cartela ou quadro recolocado. Trata-se de uma ampla moldura conformada por
rocalhas e Cs, encimada por sobreverga a se abrir para aparecer o Monte Carmelo
com a Cruz. O centro é dividido em dois planos, o terrestre, com São Simão
Stock, em seu hábito, ajoelhado, com uma mão a ostentar ramo florido de lírios
e outra estendida para receber o escapulário da Senhora do Monte Camelo – que tem
o Menino Deus no colo, no plano celeste. Ela figura sentada, envolta em bloco
de nuvens, com fundo luminoso dourado e raiado. Ainda aparecem dois anjos e
duas cabecinhas aladas. O anjo da
direita dá a mão a uma das alminhas, a resgatá-la do fogo do Purgatório.
Esta cena, trata-se da visão do eremita Simão Stoke, ocorrida em 16 de julho de 1251, quando ele viu a Senhora cercada de anjos e ela lhe disse: “Meu dileto filho: eis o escapulário que será o distintivo da Ordem. Aquele que morrer trazendo este escapulário estará livre do fogo do inferno”. (LIMA JUNIOR, 2003, p. 106). No dia 16 de julho se realiza a festa em honra a Senhora do Monte Carmelo.
Detalhe do teto da capela-mor, da Capela da Ordem Terceiro de Nossa Senhora do Carmo, Sabará-MG. Obra de Joaquim Gonçalves da Rocha, 1812. Fotografia: Luiz Cruz, 2019.
Provavelmente,
para a realização da ornamentação deste teto, pintor Joaquim Gonçalves da Rocha tenha
se inspirado nos impressos que circularam em Minas e chegaram a tantas localidades,
em especial os registros de santos.
Um
historiador sabarense transcreveu e publicou o termo das condições firmadas
entre a irmandade carmelita e o mestre pintor Joaquim Glz da Rocha, para a
ornamentação do templo, em especial o teto:
1 – Que seria pintado todo
o teto, levando um braço de arquitetura com quartelas de três faces nos seus
pedestais, em os quais se pintariam vários anjos com emblemas de Nossa Senhora
nas mãos. 2 Que no mesmo teto seriam pintados ou os doze Apóstolos, ou doze
santos desta mesma Ordem Terceira da Senhora do Carmo. 3 Que no meio teria um
painel da Coroação da mesma Senhora, e a Trindade, em um globo de nuvens
guarnecido de vários coros de anjos e querubins. 4 Que levaria na frente por
cima da cimalha um painel da figura da Santa Madre Igreja, que consta de um
Pontífice com a custódia do Santíssimo Sacramento, e Nossa Senhora com a Cruz,
e por baixo da mesma custódia as Taboas da Lei, e debaixo desta o Novo e o
Velho Testamento. 5 Que seria pintada toda a cimalha real fingida de pedra de
cambiantes, e o friso com o melhor gosto. 6 – Que seriam pintados todos os
painéis a óleo, e o mais a tempera, por melhor acerto e viveza das cores. [...].
(ZOROASTRO, 1940, p.118).
A obra
subsistente difere das “condições” estabelecidas pela contratante e concordada
pelo contratado. Provavelmente, ao longo da execução as partes entraram em
acordo para tal modificação ou mesmo adaptação. Caso o contrário teria ocorrido
libelo entre eles, conforme, comumente, ocorria com os mestres artífices e as
irmandades.
Uma
das edificações mais emblemáticas do patrimônio cultural e religioso do Brasil
é o Santuário do Senhor Bom Jesus do Matozinhos, de Congonhas-MG. É considerado
uma das obras-primas do barroco e reconhecido como Patrimônio Cultural Mundial
pela Unesco. Lá, tudo começou com o ermitão Feliciano Mendes, que ao receber
uma graça, tornou-se um esmoler para cumprir sua promessa. O campo de obras
deste santuário atraiu os mais experientes mestres atuantes daquele período e
se tornou também formador de novos artífices, um deles foi Joaquim José da
Natividade, que ficou registrado:
P. que dei ao pintor
Joaquim José da Natividade
de pintar a dita
caixinha................................... ....3 8.vas
Livro 1º de Despesa do Santuário de N.S. Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas do Campo, folha 17, 1º de janeiro a 31 de Dezembro de 1786 (Inácio Gonçalves Pereira). (FALCÃO, 1962, p.94).
A
caixinha referida no documento, provavelmente, seria o esmoleiro utilizado pelo
ermitão Feliciano Mendes.
As
“almas santas”, “almas aflitas”, “almas benditas”, “almas do purgatório” ou
simplesmente “alminhas” sempre foram cultuadas em Minas, desde os seus
primórdios e a elas se associou o culto a São Miguel, pois:
É ele quem recebe as almas
dos santos e as conduz até a alegria do Paraíso. Antigamente ele era o príncipe
da sinagoga, mas agora está estabelecido como príncipe da Igreja. Pelo que se
diz, foi ele quem dirigiu o povo hebreu no deserto e o introduziu na terra
prometida. (VARAZZE, 2003, p.813).
Em
tantas matrizes mineiras encontramos retábulos dedicados a São Miguel e Almas,
ao passar por estilos distintos, desde o Nacional Português até o Neogótico. As
representações do santo têm variações, às vezes ele porta certos elementos
icnográficos mais comuns: o escudo e espadas, às vezes a lança, a balança –
símbolo da justiça (LURKER, 1997),o estandarte, o dragão, o demônio, o ser do
mal. No retábulo colateral da Matriz de
Nossa Senhora do Pilar, de São João del-Rei-MG, São Miguel traz a balança e
nelas alminhas em chamas, além do seu estandarte; no frontão, entre trama
entalhada e dourada, aparece a pintura de grupo de alminhas entre labaredas. Quase
sempre, o santo aparece alado, em vestes romanas, com elmo e penacho.
São Miguel, retábulo da Matriz de Nossa Senhora da Conceição,de Antônio Dias. Ouro Preto-MG. Fotografia: Luiz Cruz, 2023.
São Miguel, retábulo da Capela da Ordem Terceira do Mínimos de São Francisco de Paula, Ouro Preto-MG. Fotografia: Luiz Cruz, 2023.
São Miguel, retábulo colateral da Matriz de Nossa Senhora do Pilar. São João del-Rei-MG. Fotografia: Luiz Cruz, 2023.
São Miguel, detalhe do frontão, com as alminhas e as chamas, retábulo colateral da Matriz de Nossa Senhora do Pilar. São João del-Rei-MG. Fotografia: Luiz Cruz, 2023.
O
culto às alminhas, então, esteve vinculado ao de São Miguel e também ao de
Nossa Senhora do Carmo – privilégio concedido aos carmelitas através da “Bula
Sabatina”. Mas outras devoções se vinculam as elas, em especial a Senhora da
Boa Morte e a Senhora da Glória.
Nos
distanciamos da exposição Deus lhe Pague – esmoleiros do barroco brasileiro para
analisar os precedentes devocionais presentes nas “caixinhas” da mostra, que
apresentam Nossa Senhora do Carmo em algumas e em tantas outras as alminhas.
Um
roteiro cultural de visitas em Tiradentes
Ó
virgem volte à minha alma a alegria,
também
eu estendo a mão a esta esmola!
Adélia Prado
Comece
seu roteiro ao visitar a exposição Deus lhe Pague – esmoleiros do barroco
brasileiro, no Museu de Sant’Ana. Venha conhecer os esmoleiros,
constituídos pelas caixinhas, caixas e mobiliário específico da coleta de
esmolas. São objetos simples, mas impregnados de memórias e do fazer artístico.
Embora sejam singelos, para a construção foram empregados recursos diversos
como a marcenaria, carapina, ferraria, serralheria, pintura e até a talha.
A colecionadora Angela Guiterrez na abertura da exposição. Museu de Sant’Ana, Tiradentes-MG. Fotografia: Luiz Cruz.
O
primeiro esmoler da mostra é policromado e tem a cena da Senhora do Carmo a
resgatar as alminhas do purgatório. Um devoto acendeu velas diante da cena
pintada e o fogo literalmente queimou as figuras. Ainda se conservam os
resquícios das velas. Há ainda outro esmoler com a mesma cena com a Senhora do
Monte Carmelo, pintura executada com certa erudição, mas há também outro com as
alminhas pintadas ao gosto popular e certa graça.
Caixa esmoleira, pintada com a cena de Nossa Senhora do Carmo e as alminhas, madeira recortada, século XVIII. Ouro Preto-MG. Acervo Angela Gutierrez. Fotografia: Luiz Cruz.
No
conjunto se destacam outras caixas esmoleiras pintadas, como a de Santo
Antônio, com o seu interior ornamentado com guirlanda de flores, ou ainda na
que observamos dupla representação: Nossa Senhora da Misericórdia e Santíssima
Trindade, pinturas com solução mais erudita.
Caixa esmoleira, madeira policromada, com Santo Antônio e guirlanda de flores. Século XVIII, Santa Bárbara-MG. Acervo Angela Gutierrez.Fotografia: Luiz Cruz.
Caixa esmoleira, madeira pintada, com as representações de Nossa Senhora da Misericórdia e da Santíssima Trindade. Século XVIII, Diamantina-MG.Acervo Angela Gutierrez. Fotografia: Luiz Cruz.
Da mesma forma acontece com as caixas esmoleiras entalhadas e policromadas, certas são de gosto popular e outras de cunho erudito. Ambas expressam a necessidade de se praticar ações caritativas com as doações para minimizar o fogo do Purgatório e promover a ascensão das almas a patamar superior, ao Paraíso.
Provavelmente,
a caixinha esmoleira do ermitão Feliciano Mendes fosse daquelas de pendurar no
pescoço e sair pelas ruas, largos e estradas a pedir esmolas. Na mostra há uma
destas, com o suporte em couro de boi, para ser pendurada e partir rumo às
coletas de “esmolas” ou de “espórtulas”.
Esmoleiro, madeira entalhada, policromada, com crua latina. Século XVIII. São Paulo-SP. Acervo Angela Gutierrez. Fotografia: Luiz Cruz.
Peças conhecidas por grupo bastante restrito de interessados são
os móveis esmoleiros – mesas, baús, árcas, armários; tão comuns outrora,
acabaram por se tornar raridades, mesmo em nossos principais museus
brasileiros. As peças e obras quando perdem suas funções socioculturais, acabam
comprometidas e algumas correm o risco de desaparecimento para sempre. Aqui, é o caso dos móveis esmoleiros, na exposição
tão bem apresentados, com alguns exemplares.
Mesa esmoleira. Madeira e couro – para auxiliar no seu transporte. Século XIX. Turmalina-MG. Acervo Angela Gutierrez. Fotografia: Luiz Cruz.
Das caixas de ferro ou de madeira com ferragem, solidamente seguras, às caixas de folhas de flandres. Algumas com controle de três responsáveis para abri-las, com três chaves distintas, outras com apenas uma taramela de madeira ou trinco. Em cada exemplar, expressa-se muito além da religiosidade e da ação caritativa devocional, cada peça contém o “fazer” acumulado e passado de geração a geração, seja do carpinteiro, do ferreiro, do pintor e outros.
Por
ocasião da abertura da exposição, registramos a presença de Josué Trindade,
filho e neto de tradicionais ferreiros de Tiradentes-MG. Eles produziam
fechaduras, chaves, dobradiças, cravos, borboletas, aldravas, trincos, trancas
e tudo mais de ferragem para uma edificação, sempre a manter as formas
tradicionalmente aplicadas a esses objetos. O velho Capitão foi um dos mais
habilidosos artífices da cidade, com este ofício o Capitão criou numerosa
família e hoje alguns de seus netos são exímios artesãos e mantém suas oficinas
próprias. Josué Trindade estava todo orgulhoso, a apreciar as ferragens dos
esmoleiros e a contar sobre as habilidades familiares – numa exposição como
esta, isso faz mais diferença ainda. A tradição dos ferreiros tem sido mantida
em Tiradentes-MG, nas oficinas podem executar os mais variados objetos, com desenho
elegante e com materiais de boa qualidade.
Aspectos da Oficina de Ferraria do Mestre Zinho. Bairrro Mococa. Tiradentes-MG. Fotografias: Luiz Cruz.
Tivemos
a oportunidade de assistir e registrar também, a capacitação dos monitores do
Museu da Sant’Ana para os visitantes da exposição, a própria colecionadora
apresentou os esmoleiros e suas histórias. Cada peça é única e portadora de muitos
fazeres e muitas memórias.
No
Museu da Liturgia
Após visitar a exposição Deus lhe Pague – esmoleiros do barroco brasileiro e o Museu de Sant’Ana – que é um dos elegantes do Brasil, dirija-se ao Museu da Liturgia, instalado na antiga casa paroquial, com acervo preciosíssimo da Paróquia de Santo Antônio de Tiradentes. Entre peças de grande expressividade, como o sino Jerônimo, de 1784, ou às banquetas de prata, lá se encontra a caixa esmoleira originária da Capela do Senhor Bom Jesus da Pobreza. A única antiga subsistente no acervo paroquial, pintada com o Crucificado e assinada. Embora não seja possível identificar o autor, mas está claro que na caixa esmoleira ele deixou seu nome registrado.
Caixa esmoleira, madeira recortada e pintada. Século XVIII/XIX. Capela do Senhor Bom Jesus da Pobreza, Paróquia de Santo Antônio. Tiradentes-MG. Atualmente no Museu da Liturgia. Fotografia: Luiz Cruz.
Detalhes da Caixa esmoleira, madeira recortada e pintada. Século XVIII/XIX. Capela do Senhor Bom Jesus da Pobreza, Paróquia de Santo Antônio. Tiradentes-MG. Atualmente no Museu da Liturgia. Fotografias: Luiz Cruz.
Com
relação à doação de esmolas, ainda no Museu da Liturgia, recomendamos atenção para
se observar as “salvas”. Geralmente, o objeto é colocado junto ao andor
processional para que os devotos coloquem suas doações. Por questão de
segurança, as “salvas” têm sido utilizadas somente nas celebrações da Semana
Santa.
Matriz
de Santo Antônio e o resplendor do barroco
Existiu uma capela pioneira dedicada a Santo Antônio, mas a
partir de 1710, com a instituição da Irmandade do Santíssimo Sacramento,
iniciaram as obras de acrescentamento da igreja, que passou a abrigar outras
agremiações religiosas, dentre elas a Irmandade de São Miguel e Almas, de 1727,
segundo registrado em seu Livro de Compromisso. Seu retábulo colateral foi
edificado entre 1730 e 1732, nele se encontra a imponente escultura do orago:
São Miguel; obra datável das primeiras décadas do século XVIII. O santo alado pousa
sobre tufo de nuvem, traja vestes romanas, porta elmo com penacho, tem a espada
em riste e o escudo com a inscrição QUIS UT DEUS – que é o significado
do seu nome em latim: “Quem [é] como Deus?”. No remate aparece uma tarja com
inscrição e no frontão também – o nome de Manoel Gomes Leal, que mandou pintar
e dourar o retábulo, no ano de 1732. Em consequência das repinturas,
intervenções de restauração inadequadas e falta de cuidado em geral, a pintura
do frontão se encontra em crítico estado de conservação e sua leitura visual acabou
bastante comprometida.
Página de abertura do Compromisso da Irmandade de São Miguel e Almas, 1727. Acervo da Paróquia de Santo Antônio de Tiradentes, atualmente no AEDSJDR – Museu de Arte Sacra de São João del-Rei.
Este Livro há de servir para o Compromisso
da Irmandade das Almas desta
Fregª de Stº Antº da Vª de S. Jo sé
do Rio das mortes, o que aceitei pª rubricar
por ordem do Ilmº Sr D Fr Antº de
Guadalupe Bispo do Rio e sua diocezi que
se achava na dita villa convinha
Em
17 de obro de 1727
O
Pe Joseph da Fonseca Lopes |
São Miguel em seu retábulo colateral, Matriz de Santo Antônio. Madeira policromada e dourada. Primeiras décadas do século XVIII. Fotografia: Luiz Cruz.
Ainda se encontram neste retábulo, em peanhas laterais, inseridas
no intercolúnio, as santas mártires:
Bárbara e Luzia, obras de meados do século XVIII.
Detalhe do frontão do retábulo de São Miguel e Almas, com os dizeres:ESTE ALTAR HE DAS ALMAS Q MANDOU DOURAR MANOEL GOMES LEAL NO ANNO DE 1732. Foto: Luiz Cruz.
Campas ou tumbas da Irmandade de São Miguel e Almas, identificadas com o AL – de Almas. Matriz de Santo Antônio, Tiradentes-MG. Fotograias: Luiz Cruz.
Defronte ao retábulo, no assoalho, observam-se, as divisões,
as aberturas retangulares para destampar e os números da tumbas destinadas aos
irmãos da Irmandade de São Miguel e Alma. Elas seguem na nave, junto à
balaustrada, pela direita. Cada tumba é identificada com a abreviatura: AL – de
Almas e o número. A tumba / cova
pertencia à Irmandade de São Miguel e Almas e nela eram sepultados os seus
irmãos defuntos.
Pelo espaço que ocupou no interior da matriz, constata-se que
essa agremiação religiosa teve significativa expressividade ao longo do século
XVIII.
Museu Casa Padre Toledo
Da matriz siga direto para a casa onde viveu o vigário e o líder dos inconfidentes da Comarca do Rio das Mortes: Carlos Correia de Toledo e Melo (1731-1803). Toledo viveu na casa localizada no Largo do Sol, a mais imponente da região. É edificação contemplada por modernidades daquele período e o imóvel por si é a grande atração, o visitante pode imaginar como era o modus vivendi do clero que enfrentava jornadas de trabalho diversas, como orador, fazendeiro, minerador e sonhador de um Brasil independente. Além da edificação, o museu apresenta peças diversas, algumas sacras e dentre estas dois esmoleiros setecentistas, com os suportes em couro para se sair a pedir a esmolas.
Caixinha esmoleira. Madeira policromada e recortada. Século XVIII. Procedência: Museu da Inconfidência. Museu Casa Padre Toledo, Tiradentes-MG. Fotografia: Luiz Cruz.
O
encontro com a devoção carmelita
Da Casa do Vigário Toledo, nossa sugestão é seguir direto
para o Alto de São Francisco e lá, parar para respirar e contemplar a paisagem
arquitetônica e ambiental de Tiradentes-MG. Recuperado o fôlego, prepare-se
para visitar uma capela graciosa, edificada e ornamentada de acordo com os
princípios dos Mínimos de São Francisco de Paula, mas com encantamento
imensurável.
Em São João del-Rei, em 1727, já estava constituída a Irmandade de Nossa Senhora do Carmo, hospedada na Matriz de Nossa Senhora do Pilar. Em 1734, provisão já determinava a construção de sua capela própria. Segundo o historiadoe Aluízio José Viegas, a partir da elevação da irmandade em Ordem Terceira do Carmo de São João del-Rei, esta passou:
a funcionar como forania carmelita e todas as matrizes e capelas dedicadas à N.S. do Carmo e mesmo quase todas as vilas dessa região tinham padres subcomissionados, subordinados ao Pe. Comissário de São João del-Rei (VIEGAS, 1970, p.47).
Há lacuna documental, mas pode ser que na Capela de São
Francisco de Paula tenha funcionado uma “presidia” do Carmo de São João del-Rei.
As presídias foram criadas em divesas localidades, como suporte fundamental da
expansão terciária e sobretudo do vigor econômico da associação-matriz do Carmo
no território da colônia; porém, pouco se sabe sobre o seu funcionamento e
como participavam da manutenção da
ordem. (ANDRADE, 2019).
Imagem de Nossa Senhora do Carmo. Século XVIII. Capela de São Francisco de Paula. Tiradentes-MG. Foto: Luiz Cruz
No retábulo-mor da Capela de São Francisco de Paula, no nicho
da direita, encontramos imponente imagem desta devoção. Ela tem a tez em tom
mais para terrosos, segura o Menino Deus no colo, veste hábito carmelita e
apresenta o gesto para mostrar o escapulário. No outro nicho está a imagem de
Santo Antônio, com o Menino Deus deitado em seu colo, enquanto no trono o orago
figura com significativa imponência, a ostentar o seu cajado. É nesta capela
que encontramos a Senhora do Carmo, a devoção mais vinculada ao culto das almas
redentoras, ela que estende as mãos para elevar aos céus as almas purificadas
pelo fogo do Purgatório.
Então, caro leitor, você é nosso convidado para realizar um tour
cultural por nossa amada Tiradentes-MG, a partir de um objeto singelo a “caixa
esmoleira”, terá um autêntico encontro com a arte, os ofícios, a devoção, a
história, a tradição e a cultura do nosso povo. Programe-se, realize este tour
até o final do ano ou para abrir a temporada 2024, com muitas informações, boas
energias e as bençãos de Nossa Senhora do Carmo, a salvadora das alminhas do
Purgatório.
Luiz Antonio da Cruz
IRMANDADES DAS ALMAS / SÃO MIGUEL E ALMAS PERÍODO COLONIAL EM MINAS GERAIS (BOSCHI,
1986) |
||
1.
Comarca
de Mariana |
||
Irmandade |
Ano |
|
Camargos –
Nossa Senhora da Conceição |
São Miguel e
Almas |
1737 |
Guarapiranga – Nossa Senhora da Conceição |
São Miguel e Almas |
1760 |
Inficionado –
Nossa Senhora de Nazaré |
São Miguel e
Almas |
1765 |
Mariana – Curato
da Sé |
Almas |
1763 |
Monte Furquim
– Bom Jesus do Monte |
São Miguel e
Almas |
1766 |
São Caetano –
São Caetano |
São Miguel e Almas |
1767 |
Sumidouro –
Nossa Senhora do Rosário |
Almas |
1718 |
2.
Comarca
de Vila Rica |
||
Cachoeira do
Campo – Nossa Senhora de Nazaré |
Almas |
1754 |
Casa Branca –
Santo Antônio |
Almas |
1720 |
Itatiaia –
Santo Antônio |
Almas |
1727 |
Ouro Branco –
Santo Antônio |
Almas |
1731 |
Vila Rica –
Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de
Antônio Dias |
Almas e/ou
São Miguel e Almas |
1732 |
Vila Rica – Freguesia
de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto |
Almas e/ou
São Miguel e Almas |
1712 |
3.
Comarca
de Sabará |
||
São Miguel e Almas |
1773 |
|
Raposos – Nossa Senhora da Conceição |
Almas |
1773 |
Rio das Pedras – Nossa Senhora da
Conceição |
Almas |
1725 |
Santo Antônio
da Roça Grande – Santo Antônio |
Almas |
1771 |
4.
Comarca
de Caeté |
||
Antônio Dias
– Nossa Senhora do Nazaré |
Almas |
1751 |
Caeté – Nossa
Senhora do Bom Sucesso |
Almas |
1785 |
Santa Bárbara
– Santo Antônio do Ribeirão |
São Miguel e
Almas |
1766 |
São João
Batista do Morro Grande |
Almas |
1749 |
São Miguel de
Piracicaba |
São Miguel e
Almas |
1750 |
5.
Comarca
da Vila do Príncipe |
||
Conceição do
Mato Dentro – Nossa S. da Conceição |
Almas |
1738 |
Tejuco –
Santo Antônio |
Almas |
1756 |
6.
Comarca
de São João del-Rei |
||
Aiuruoca –
Nossa Senhora da Conceição |
São Miguel e
Almas |
1812 |
Barbacena –
Nossa Senhora da Piedade |
São Miguel e
Almas |
1753 |
Carijós –
Nossa Senhora da Conceição |
São Miguel e
Almas |
1773 |
Ibitipoca –
Nossa Senhora da Conceição |
Almas |
1751 |
Nossa Senhora
da Glória do Caminho Novo |
Almas |
1754 |
Prados –
Nossa Senhora da Conceição |
São Miguel e
Almas |
1719 |
São João
del-Rei – Nossa Senhora do Pilar |
Almas |
1716 |
Rio das
Mortes – Santo Antônio |
Almas |
1722 |
São José
del-Rei – Santo Antônio |
Almas |
1724 |
Agredecimentos: Angela Gutierrez, Caio César Boschi, José Bouzas, Maria Agripina Neves, Maria Clara Caldas Ferreira, Maria José Boaventura.
Referências:
ANDRADE, Francisco Eduardo de. Presídias dos terceiros do Carmo de Vila Rica: territorialidade e rede confraternal em Minas Gerais – 1744-1828. Belo Horizonte: Horizonte, Puc Minas, v. 17, nº 53, maio/agosto, 2019.
BOSCHI, Caio César Boschi. Os leigos e o poder – irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Editora Ática, 1986.
CAMPOS, Adalgisa Arantes. As Irmandades de São Migueal e as Almas do Purgatório: culto e iconografia no Seteccentos mineiro. Belo Horizonte: C/Arte, 2013.
CAMPOS, Adalgisa Arantes. Escatologia, iconografia e práticas funerárias no barroco das Gerais. In: As Minas setecentistas, vol. 2 (org. Maria Efigênia L. de Resende e Luiz C. Villalta). Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
FALCÃO,
Edgar de Cerqueira. Relíquias da Terra do Ouro. São Paulo: Graphicars –
F. Lanzara, 1946.
FALCÃO, Edgar de Cerqueira. A Basílica do Senhor Bom Jesus de Congonhas do Campo. Braiiensia Documenta, v. III, 1962.
GUTIERREZ, Angela., SANTOS, Angelo Oswaldo de Araújo. Deus lhe Pague – esmoleiros do barroco brasileiro. Belo Horizonte: Instituto Cultural Flávio Gutierrez, 2023.
JARDIM,
Márcio. Aleijadinho – Catálogo geral do obra. Belo Horizonte: RTKF,
2006.
LIMA JUNIOR, Augusto de. História de Nossa Senhora em Minas Gerais. Belo Horizonte: Autêntiva Editora, Puc Minas, 2008.
LURKER, Manfred. Dicionário de Simbologia. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
PASSOS, Zoroastro Vianna. Em torno da história de Sabará. Rio de Janeiro: Publicações do SPHAN, nº 5, 1940.
REZENDE, Leandro Gonçalves de. O Monte Carmelo nas montanhas de Minas: arte, iconografia e devoção nas Ordens Terceiras do Carmo de Minas Gerais (séculoss XVIII e XIX). Dissertação de mestrado apresentada junto à Fafich. Belo Horizonte: UFMG, 2016. [manuscrito].
SANTOS, Angelo Oswaldo de Araújo. Historiadora conta como Tiradentes ingressou em Vila Rica – O Carmo não se opôs a Tiradentes, descedente de família sem fortuna, e deu-lhe a credencial para quem chegava a Vila Rica com intenção de prosperar. Belo Horizonte: Estado de Minas, Pensar, 4 de maio de 2013.
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea – vida de santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
VIEGAS,
Aluízio José. A Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo de São
João del-Re e sua igreja. São João del-Rei: Revista do IHG de SJDR. V. VI,
1988.
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