COSME E DAMIÃO – DEVOÇÃO POPULAR DO BRASIL
São João del-Rei, 2022. Fotografia: Luiz
Cruz.
Sinhá mandou preparar
Cocada branca, paçoca e
bolo com guaraná
Quem manda hoje é beijada
Amor que traz proteção
Salve, Cosme e Damião
Ibejís – Nas brincadeiras de
crianças: Os orixás que viraram santos no Brasil. GRES
Renascer de Jacarepaguá-RJ, 2016.
A
igreja considerada mais antiga do país é dedicada aos santos Cosme e Damião e
se localiza em Igarassu-PE, bem tombado pelo IPHAN em 1951. Na década de 1530,
Duarte Coelho Pereira mandou construir essa igreja. Segundo a tradição, foram
esses santos que teriam ajudado na vitória sobre os índios potiguaras e os
franceses, mas há outra versão de que graças à dupla, cultuada em Igarassu, que
a localidade fora a única da região não atingida pela febre amarela. A fachada
do templo tem dois oratórios que abrigam esculturas dos oragos, que estão
também no retábulo-mor. Durante a invasão holandesa, a igreja sofreu um
incêndio. Posteriormente, a edificação passou por obras e recebeu uma torre
lateral; recentemente teve mais uma intervenção de restauro artístico.
Matriz de São Cosme e São Damião, cerca de 1535,
Igarassu-PE. Detalhe da fachada e retábulo-mor. Fotografias: Luiz Cruz.
A
antiga capela foi retratada pelo pioneiro do paisagismo brasileiro, o pintor holandês
Frans Post (1612-1680). Ele veio para o Brasil com a comitiva do conde Maurício
de Nassau (1604-1679), designado para governar as terras que se encontravam sob
o domínio da Holanda. Em uma de suas pinturas, Post registrou a edificação que
hoje é a Matriz de Igarassu. Trata-se de uma paisagem edênica – ou seja – a
construção de uma paisagem através do olhar do estrangeiro, associado à
construção do imaginário, com escolhas, criatividade e até negação; porém, confere
significação, na qual se legitima pela credibilidade. Nessa e em outras
paisagens do mesmo artista, “estabelece-se um jogo de dentro e fora,
entre o autor que inventa a paisagem e o seu objeto.” (PESAVENTO, 2004). Essa
igreja é pioneira enquanto elemento arquitetônico e também como estruturador da
paisagem pintada no Brasil.
Igreja de São Cosme e
Damião, século XVII – 1660-1680.
Pintura, óleo sobre
madeira, autor Frans Post.
–
Afinal, quem foram esses dois santos tão queridos no Brasil? – Os gêmeos
nasceram na região da Ásia Menor, mais precisamente na Síria, por volta do
século III, atuaram voluntariamente como médicos e foram fiéis às pregações de
Cristo. Não passaram pelos tormentos causados pelo fogo, água, ar e nem mesmo os
da cruz. A mando do imperador
Diocleciano, no início do século IV, os dois foram decapitados e enterrados
juntos. A iconografia da dupla tem representações muito antigas e algumas raras
lembram que eram asiáticos, conforme as existentes no Museu da Misericórdia e
Museu de Arte Sacra, de Salvador-BA. No Brasil, há variadas representações,
inclusive de origem afro. Geralmente, a dupla ostenta a palma, símbolo de que
foram martirizados, em outras trazem caixas com medicamentos. Atualmente, são
reconhecidos como os padroeiros dos médicos e dos farmacêuticos.
Representação de Cosme e Damião, Museu
de Arte Sacra, Salvador-BA. Fotografia de Aziz Pedrosa. Representação afro dos
santos gêmeos. Fotografia: disponível em
https://ileorixa.com.br/wp/assentamento-do-orixa-ibeji-de-pai-alexandre-de-oya-tofa/
O nome
Cosme significa “o enfeitado” e Damião, “o popular” – a dupla realmente se
tornou bastante popular no Brasil, principalmente por realizar a cura de
enfermidades. Mas também, pelos doces oferecidos no dia 27 de setembro, quando se
celebra seu dia. Sua associação aos doces vem das religiões de matriz
afro-brasileira, especialmente a Umbanda e o Candomblé, são sincretizados como
Ibeiji, orixá que é representado por irmãos gêmeos. Em diversas cachoeiras,
riachos e córregos pelo país afora, encontramos oferendas aos “Erês”, na região Campo das Vertentes, usam as cachoeiras da Serra do Lenheiro e da Serra de
São José, especialmente a Cachoeira do Bom Despacho, no município de Santa Cruz
de Minas. Essas oferendas são colocadas em cestos, com doces, balas, pirulítos,
pipocas, frutas e refrigerantes.
Oferenda aos “Erês”, Cachoeira do Bom
Despacho, Santa Cruz de Minas.
Fotografia: Luiz Cruz.
Na
Bahia, vem de longos tempos a tradição de servir o “caruru” no dia de Cosme e
Damião. A iguaria deve ser preparada no mesmo dia e se utiliza o quiabo,
camarão seco, amendoim, castanha de caju, gengibre e os temperos para acentuar
os sabores. Mas o cardápio pode variar e incluir xinxim de galinha, vatapá,
arroz, milho branco, feijão fradinho, farofa, acarajé, banana-da-terra frita e outros
quitutes. No Rio de Janeiro e em diversas cidades fluminenses o dia desses
santos mobiliza a criançada que sai coletando as sacolinhas de doces. E nessa
cidade Cosme e Damião já inspiraram diversos enredos das escolas de samba, até da
gloriosa Mangueira que desfilou com a ala das baianas armadas com as famosas
sacolinhas de doces.
Sacolinhas de Cosme e Damião compondo as
saias das baianas, da Escola de Samba Mangueira, 2018. Foto: Disponível: mangueira+cosme+damião&rlz=1C1FCXM_pt-PTBR992BR992&sxsr
Em
Tiradentes, quando o Instituto Cultural Biblioteca Largo do Ó funcionou, ao
longo de seus dezessete anos de existência, realizava-se uma programação especial
para celebrar o dia de Cosme e Damião, com diversas atividades, brincadeiras e
jogos, para no final ocorrer a distribuição de balas e doces. Em pagamento de
promessas, algumas pessoas ainda distribuem balas no dia 27 de setembro, como as
benzedeiras Dona Erci e Dona Ica, no Bairro Cascalho.
As benzedeiras Dona Erci, Dona Ica e
netas se preparando para distribuir as sacolinhas de São Cosme e São Damião. Tiradentes,
2021. Foto: Luiz Cruz.
No dia
24 de setembro, participamos e registramos a Festa das Crianças, a Festa dos Erês,
ocorrida na Tenda de Umbanda Ogum de Ronda, no bairro Caieiras, em São João
del-Rei. O “Erê” é um ser iluminado e
encantado que trabalha com o intermédio do orixá, que expressa sua vontade; esse
termo é mais utilizado no Candomblé, enquanto na Umbanda se utiliza “Ibeijada”,
por serem distintos entre as duas linhas. Vale destacar que o termo pode ser
empregado também para a Legião das Crianças da Umbanda. No entardecer, foi uma festa
bonita, com muita música, dança, brincadeiras e uma fabulosa mesa de doces,
bolos, balas para as crianças de todas as idades e “Que os doces e as balas
abençoados da ibeijada adocem as amarguras da vida e nos devolvam o sorriso no
rosto”.
Mesa de doces, balas e bolos de São
Cosme e São Damião, Festa da Ibeijada.
São João del-Rei, 2022. Fotografias:
Luiz Cruz.
A
Igreja Católica, a Igreja Ortodoxa e as religiões de matriz afro-brasileira – Candomblé
e Umbanda, celebram o dia dos santos gêmeos. E uma das igrejas mais antigas a
eles dedicada se encontra em Roma, a Basílica dos Santos Cosme e Damião,
construção iniciada em 309 (?), que em 1632 foi reformada pelo Papa Urbano
VIII, através de projeto arquitetônico de Orazio Torriani.
Luiz Antonio da Cruz
Referências
PESAVENTO, Sandra
Jatahy. A invenção do Brasil – O nascimento da paisagem brasileira sob o
olhar do outro. Revista de História e Estudos Culturais. Porto Alegre:
UFRS, 2004.
TELLES, Augusto da
Silva. O Patrimônio Construído. São Paulo: Capivara, 2002.
MARIANO,
Agnes. História do povo negro – Caruru de Cosme e Damião. Disponível:
https://historiasdopovonegro.wordpress.com/fe-2/caruru-de-cosme-e-damiao/
BÁRTOLO, Lucas. Cosme e Damião: o enredo de uma cidade. Universidade de São Paulo, 2018
Imensa gratidão por este texto tão expressivo quanto informativo. Em nome da Tenda Ogum de Ronda, receba nosso agradecimento especial por sua presença e pela divulgação da festa que lá fizemos. Atenciosamente, Ulisses Passarelli.
ResponderExcluirCaro Ulisses e Betânia, muito obrigado pelo convite para participar e registrar a Festa dos Erês. Foi uma experiência ímpar e tudo transcorreu maravilhosamente bem. Tenho certeza de que todos os participantes ficaram felizes, porque na Tenda Ogum de Ronda nos sentimos bem, com a proteção da mãe natureza, dos orixás, dos Erês, do Grande Pai. Que lugar lindo e tão bem cuidado!!! Gratidão e que os santos Cosme e Damião protejam vocês, sempre. Abraços, Luiz Cruz
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