ROSÁRIO – RESISTÊNCIA, DEVOÇÃO, IRMANAÇÃO

 

Nossa Senhora do Rosário com o Menino Deus, São Domingos e São Francisco. Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, século XVIII. Tiradentes-MG. Fotografia: Luiz Cruz.

  

E vem do mar

Lá vem Nossa Senhora

Ela é a mãe de Deus

Ela é a mãe do negro

É a santa que todo mundo adora

Lá no mar, quando ela apareceu

Relampiou, quando ela apareceu

Oh, Nossa Senhora

Abençoe os filhos teus

                                               Serra acima, Ponto de Congados – domínio público 

 

Para movimentar as atividades econômicas da colônia brasileira, os portugueses sequestraram e escravizaram milhões de homens, mulheres e crianças de várias nações do continente africano. Em comum entre eles, povos de culturas, línguas e costumes diferentes, havia a devoção à Senhora do Rosário, a quem agarravam com força e fé, principalmente na travessia do Atlântico. 

Distribuídos por tantas paragens, os pretos cativos se organizaram em torno da devoção de todos: o Rosário. Ao se irmanarem, mandavam edificar suas capelas para abrigar o orago principal e as demais devoções negras – as senhoras das Mercês e Aparecida, São Benedito, Santo Antônio de Categeró e Santa Efigênia. 

Em Minas, praticamente em todas as ocupações se ergueram essas capelas devocionais, construídas pelas “irmandades de negros, únicas instituições nas quais o homem de cor podia exercer, dentro da legalidade, certas atividades que pairavam acima de sua situação de escravo, poderia viver como um ser humano”. (BOSCHI, 1983, p.14) Documentalmente, a mais antiga irmandade de Minas de que se tem notícia é devotada à Senhora do Rosário, mas as do Santíssimo Sacramento foram as mais numerosas. 

Claro que em certas localidades, as irmandades de pretos se destacaram sobremaneira, como a de Ouro Preto, instituída em 1711 (LIMA JUNIOR, 2008, p. 92). Quando a Matriz de Nossa Senhora do Pilar esteve em obra de acrescentamento, o Santíssimo Sacramento ficou depositado na Capela do Rosário, que serviu de Matriz. A Irmandade do Rosário colaborou para a construção e para a ornamentação da nova igreja; ainda, participou da transladação do Santíssimo Sacramento para a Matriz de Nossa Senhora do Pilar, que ficou conhecida como Triunfo Eucarístico, ocorrida a 24 de maio de 1733:

 

Seguia-se a Irmandade do Rosário do Pretos, numerosa de muitos Irmãos, todos com opas de seda branca.

No meio dela iam três andores; o primeiro de Santo Antônio de Categeró; o segundo de S. Benedito; o terceiro da Senhora do Rosário, nas imagens era muito vistoso o ornato em sedas de ouro, e prata; e em várias e cuidadas peças de ouro e diamantes; nos andores em sedas, galões e franjas de ouro variedade e galantaria de diferentes flores de diversos materiais e alternadas cores. (AVILLA, 1963, p. 95,96).

 

 Posteriormente, a partir de 1757, Capela do Rosário de Ouro Preto, recebeu obra de ampliação, com planta elaborada pelo arquiteto português Dr. Antônio Pereira de Souza Calheiros, que vivia na Vila de São José del-Rei. 

 

 O Futuro é Ancestral, pintura do artista Bruno H. Souza, 2022. Beco do Zé Moura, Tiradentes-MG. Fotografia: Luiz Cruz.

 

Exatamente como ocorrera em Ouro Preto, em São José – atual Tiradentes, em 1727, a primitiva Capela do Rosário serviu de Matriz por essa se encontrar em obras de ampliação. Infelizmente, toda documentação dessa capela se perdeu, inclusive dos registros das obras e monumentalização do templo, com o uso de materiais rochosos e a exuberante ornamentação pictórica. 

Conforme era costume, irmandades contribuíam financeiramente para a construção das matrizes, capelas ou mesmo de retábulos devocionais e neles realizar todas as suas celebrações, festas e sepultamentos. No Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora dos Homens Pretos, ereta na Capela da Mesma Senhora, na Villa de São José, Comarca do Rio das Mortes, Bispado de Mariana, instituído no ano de 1795, em seu Cap. XI, destaca que:

 

[...] de sua Igreja, isenta de qualquer pensão, ou ônus da Fábrica da Matriz, atendendo a esta não concorrer de forma alguma, para a fatura, e ornato da dita Igreja, e ser esta das particulares, e não filial, cuja fatura tem sido do rendimento das esmolas dos irmãos e mais fieis que por seu, e digo, zelo e devoção para ela concorrerão.

 

 



Detalhe do Cap. XI e página de rosto do Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora dos Homens Pretos, ereta na Capela da Mesma Senhora, na Villa de São José, Comarca do Rio das Mortes, Bispado de Mariana, instituído no ano de 1795. Arquivo da Diocese de São João del-Rei, Museu de Arte Sacra de SJDR.


Conforme registrado e se pode observar, os pretos cativos arcaram com seus recursos próprios com despesas da obra e da ornamentação da edificação, sem “ônus” para a Fábrica – nesse caso, a Matriz de Santo Antônio. Apesar das dificuldades financeiras, os irmãos acabaram dotando a capela com elementos pétreos bem trabalhados, boa talha e exímia pintura arquitetônica para o teto da capela-mor e delicada pintura dos Mistérios do Rosário, em caixotão, obra atribuída ao pintor Manoel Victor de Jesus.

 

Gravura de Nossa Senhora do Rosário e santos dominicanos, século XVIII. Acervo Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro-RJ.

 

Com o passar do tempo, a Capela de Nossa Senhora do Rosário sofreu drasticamente com as intempéries, a presença de insetos xilófagos e a falta de manutenção. Passou por intervenções de restauro, que de certa forma, acabaram comprometendo ainda mais os elementos artísticos, conforme se constata através dos diversos documentos do ACIPHAN-Arquivo Central do IPHAN, Rio de Janeiro. 

Durante certo tempo, a tradicional Festa de Nossa Senhora do Rosário deixou de ser realizada, mas através da iniciativa de uma devota, Ariadne Barbosa de Souza Motta (1956-2001) e com o apoio do Corpo de Bombeiros Voluntários de Tiradentes, foi resgatada. Porém, para abrilhantar a festa, foi necessário trazer o Terno de Congado de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, do Capitão Zé Carreira, do vizinho município de Coronel Xavier Chaves.


                                    

Meninos e meninas que fizeram bandeira de Nossa Senhora do Rosário, para a sua festa. Fotografia: Luiz Cruz.


Procissão de Nossa Senhora do Rosário. Tiradentes-MG. Fotografia: Luiz Cruz.

 

Posteriormente, através de iniciativa do Instituto Cultural Biblioteca do Ó, desenvolveu-se o Projeto Recontando o Rosário, apoiado financeiramente pela Fundação Palmares, para pesquisa e resgate do congado em Tiradentes e resultou na criação do Terno de Congado de São Benedito. Após a desativação da Biblioteca do Ó e por falta de espaço, esse terno acabou desativado.

 

Congado de São Benedito, Tiradentes-MG, 2011. Fotografia: Luiz Cruz.

 

Congado de São Benedito, Tiradentes-MG, 2011. Fotografia: Luiz Cruz. 


Congado de São Benedito, Tiradentes-MG, 2011. Fotografia: Luiz Cruz.

 

Mais tarde, então, surgiu o Terno de Congado de Nossa Senhora do Rosário e Escrava Anastácia, do Capitão Prego. Este se estruturou e passou a promover o Encontro de Congados de Tiradentes, durante o mês de julho, quando ternos de diversas localidades da região se encontravam, confraternizavam e reverenciavam a Senhora do Rosário e a Senhora das Mercês – que também tem sua capela e deve ter promovido festas com congados. Há um documento da irmandade mercedária do pagamento ao pintor Manoel Victor de Jesus pela confecção de “uma bandeira para o mastro de festividades”, datado de 11 de fevereiro de 1817 (obra com paradeiro desconhecido).

 

Livro de Recibos da Irmandade de Nossa Senhora das Mercês. Tiradentes-MG. Arquivo da Diocese de São João del-Rei, Museu de Arte Sacra. Recibo de pagamento a Manoel Victor de Jesus pela pintura de “uma bandeira para o mastro de festividades”, datado de 11 de fevereiro de 1817.

 

Para o Encontro de Congados de Tiradentes, os mastros dos santos padroeiros, com suas respectivas bandeiras foram instalados no adro da Capela de Nossa Senhora das Mercês. Ao final do encontro, ocorria a cerimônia de arreamento dos mastros, cada terno se dirigia até o de sua devoção e fazia o arreamento e o recolhimento da bandeira. Uma cerimônia simples, mas muito tocante. 


         

Encontro de Congado de Tiradentes, organizado pelo Capitão Prego, Tiradentes-MG, 2017. Fotografia: Luiz Cruz.


Durante o período de pandemia, o Encontro de Congado de Tiradentes não ocorreu, mas desde dezembro de 2020, o Terno de Congado de Nossa Senhora do Rosário e Escrava Anastácia vinha sofrendo ação de preconceito estrutural, conforme matéria divulgada, inicialmente, pelo Portal Mais Vertentes, em 23 de dezembro de 2020, sob o título: Tiradentes: Após polêmica sobre a proibição da Congada, Igreja alega incompatibilidade no sincretismo religioso e afirma que “não tem a ver com preconceito”.

 

Prefeito Nilzio Barbosa recebendo o Terno de Congado de Nossa Senhora do Rosário e Escrava Anastácia, Capela de Nossa Senhora Rosário, Tiradentes-MG, 2022. Fotografia: Luiz Cruz.

 

Após a intervenção do Ministério Público Federal, no dia 10 de julho de 2022, ocorreu o VII Encontro de Congado de Tiradentes, sob o comando do Capitão Prego, mas por motivos de segurança sanitária, sem a participação de ternos convidados. A concentração aconteceu em frente a Matriz de Santo Antônio, desceu a Rua da Câmara, parou na Loja Criativa, onde se inaugurou o painel Retomada, do artista Bruno H. Souza, e foi servido um café aos congadeiros e acompanhantes. Em seguida, o Terno se dirigiu até a Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, quando teve recepção pelo prefeito de Tiradentes, Nilzio Barbosa, e o grupo pôde se dirigir até a capela-mor, bater tambor e reverenciar a Senhora do Rosário. Foram momentos de forte impacto, registrados por diversos fotógrafos e cinegrafistas.

 

Inauguração do painel Retomada, do artista Bruno H. Souza, pátio da Loja Criativa, Tiradentes-MG. Fotografias de Luiz Cruz.

 

   

Capitão Prego e o Congado de Nossa Senhora do Rosário e Escrava Anastácia reverenciado a Senhora do Rosário. Tiradentes-MG, 2022. Fotografia: Luiz Cruz. 

 

Desde que o Terno de Congado de Nossa Senhora do Rosário e Escrava Anastácia sofreu ação de preconceito estrutural por parte da Santa Madre Igreja Católica, os artistas reagiram e se manifestaram. Como já ocorreu em tempos e espaços diversos, a ARTE sempre chega para alertar e transformar situações de opressão e abuso de poder. Pinturas, fotografias, instalações, projeções – desde então, têm ocorrido no Beco do Zé Moura. E, a cada dia, esse logradouro fica mais bonito e anuncia um basta ao preconceito racial e à intolerância religiosa. Afinal, a Capela de Nossa Senhora do Rosário do Homens Pretos foi edificada e ornamentada por seus irmãos pretos e escravizados, sem o apoio da “fábrica” – que era a Matriz da localidade. Essa é uma devoção dos homens pretos, essa capela é dos homens pretos!!!

 

Capitão Prego e Escrava Anastácia. Instalação no Beco do Zé Moura, Tiradentes-MG, 2022. Fotografia: Luiz Cruz.

 

  

Coletivo dos artistas. Instalação no Beco do Zé Moura, Tiradentes-MG, 2022. Fotografias: Luiz Cruz.

 

           

        Coletivo dos artistas. Instalação no Beco do Zé Moura, Tiradentes-MG, 2022. Fotografias: Luiz Cruz. 


            

Coletivo dos artistas. Instalação no Beco do Zé Moura, Tiradentes-MG, 2022. Fotografia: Luiz Cruz.


                  

O artista Bruno H. Souza executando o painel O Futuro é Ancestral. Beco do Zé Moura, Tiradentes-MG. Fotografia: Luiz Cruz.

                             

Congadeiro, grafite de Bolinho, Beco do Zé Moura, Tiradentes-MG, 2022.Fotografia: Luiz Cruz.

 

Segundo a Constituição Brasileira, Art. 5, VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recursar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei. Portanto, em caso de preconceito estrutural, cabe acionar o Poder Público, mover ação judicial e até mesmo uma ação por perdas e danos aos preconceituosos de plantão. 

Afinal, em inúmeras localidades mineiras se celebram belíssimas Festas de Reinados de Nossa Senhora do Rosário, como Oliveira, Itapecerica, Bambuí, Uberlândia, Ouro Preto, Conselheiro Lafaiete e tantas outras – nessas localidades os ternos de congados estão integrados às comunidades, são recebidos nas igrejas pelos párocos. Em Oliveira, em especial, todos ternos de congados entram, ocupam seus espaços na Catedral e saem em procissão com seus santos devotos, tudo com o maior respeito, organização impecável e o acompanhamento pelo vigário. Nessas cidades, não há preconceito estrutural, todos se confraternizam e se irmanam em torno da Senhora do Rosário, sem distinção de raça, credo ou de condição econômica. 


Detalhe, Congadeiro, grafite de Bolinho, Beco do Zé Moura, Tiradentes-MG, 2022. Fotografia: Luiz Cruz. 

 

Dia 7 de outubro é dia de Nossa Senhora do Rosário, de acordo com a Folhinha Eclesiástica de Mariana, a padroeira dos povos sequestrados de várias etnias africanas e que foram escravizados por toda colônia brasileira. Que rufem os tambores, que se entoem muitos pontos de congados e que a Senhora do Rosário derrame muitas bençãos sobre todos os seus inúmeros devotos.

 

Painel O Futuro é Ancestral, obra do artista Bruno H. Souza. Beco do Zé Moura, Tiradentes-MG, 2022. Fotografia: Luiz Cruz.

 

 

                    

Congado de Nossa Senhora do Rosário e Escrava Anastácia na Oficina Saberes em roda: patrimônio imaterial de Tiradentes, 2 de setembro de 2022. Fotografia: Luiz Cruz. 

 

É importante ressaltar que o Congado se constitui como uma das mais genuínas manifestações culturais e conforma o Patrimônio Imaterial do Brasil. O Escritório Técnico IPHAN-Tiradentes e a equipe da SE-BH realizaram a Oficina Saberes em roda: patrimônio imaterial de Tiradentes, no dia 2 de setembro de 2022. Com excelente participação local, tratou-se dos processos da salvaguarda dos bens culturais, em especial o processo de registro das “Congadas, Congado, Reinado capitaneados”, pelo IPHAN. Para tal, será necessário instrumentalizar o processo, com todas as informações pertinentes. Ou seja, em breve, teremos mais um bem imaterial, reconhecido como Patrimônio Nacional, o CONGADO. 

Salve Maria, Salve o Rosário! 

Luiz Antonio da Cruz

 

 Referências:

ÁVILA, Affonso. Resíduos seiscentistas em Minas. Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros, 1967.

BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder. São Paulo: Editora Ática, 1986.

Constituição da República Federativa do Brasil.

LIMA JUNIOR. Augusto de. História de Nossa Senhora em Minas Gerais. Belo Horizonte: Autêntica Editora, Ed. PUC Minas, 2088.

https://www.maisvertentes.com.br/noticia/1833/tiradentes-congadeiros-alegam-preconceito-da-diocese-ao-restringir-entrada-na-igreja-igreja-de-nossa-senhora-do-rosario-dos-pretos-padre-alegra-incompatibilidade-no-sincretismo-religioso-e-afirma-que-lnao-tem-haver-com-preconceitor, 23/12/2020 às 18h05. Atualizada em 24/12/2020 às 10h34.

 https://radiosaojoaodelrei.com.br/2022/07/06/vii-encontro-de-congado-acontece-em-tiradentes-neste-domingo-10/

Comentários

  1. Que maravilha de artigo. Pura História!

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    1. Terezinha Pereira, Gratidão por sua presença aqui. Precisamos de muitas pesquisas para compreender a força e a expressividade do "povo escravizado" - que tanto contribuiu para a conformação de nossa sociedade e da nossa identidade cultural. Daqui de Tiradentes um abração para você aí em Pará de Minas.

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