OURO
PRETO:
ENTRE
BOCAS E GÁRGULAS
Torres da Capela da Ordem Terceira de São Francisco de Assis e do
Museu da Inconfidência ao entardecer. Fotografia: Luiz Cruz.
A história é como uma corrente
desgovernada que passa sobre as cabeças e, ao sabor de opiniões sempre
trabalhadas pelas consciências do momento, vai recalcando certas figuras,
fazendo emergir outras.
Rui Mourão, Boca de Chafariz, p. 215.
Ouro
Preto conforma-se como o principal conjunto arquitetônico barroco das Américas.
Naquele sítio tudo contribui para exaltar a dramaticidade barroca, a
luminosidade, os morros íngremes, as neblinas pesadas, as igrejas edificadas em
pontos estratégicos. Tudo nos surpreende e nos encanta. “A ‘surpresa’ é um dos
principais fatores de apelo barroco para a cidade de Ouro Preto: deriva sempre
de imprevisibilidade flagrante impressa no processo de apreensão do espaço
urbano, fundamenta-se na alternância de imagens estéreis com grandes cenas que
explodem repentinamente no visual do fruidor”. (BAETA, 2012, p.312). Inseridos
em diversos pontos desse conjunto, podemos apreciar vários chafarizes, certos
de significativa imponência, como o dos Contos ou o da Glória, outros por sua
elegância e singeleza, como o do adro da Igreja do Senhor Bom Jesus de
Matosinhos, no bairro Cabeças. Os chafarizes ao serem questionados, também falam,
entre bocas, gárgulas e águas, correm muitas histórias.
Chafariz dos Contos, Ouro Preto.
Fotografia: Luiz Cruz.
Acervo: Luiz Cruz.
“O
TEMPO comanda os homens e as coisas”, com essa frase o autor inicia a obra.
Tempo, esse fator que é implacável com tudo e com todos. 1979 – é a primeira
data que surge no livro. Um ano difícil para a antiga capital mineira, quando
chuvas intermitentes provocaram diversos deslizamentos na cidade, a afetar
drasticamente seu conjunto arquitetônico e urbanístico. Tudo foi registrado, as
consequências e os primeiros socorros: “Tiveram início os trabalhos de
sustentação das bases da Igreja de São Francisco de Assis, da Santa Casa da
Misericórdia, da Igreja de São Francisco de Paula e da Igreja de São José.”
(MOURÃO, 2010, p.96). Entre os morros deveras
íngremes, que parecem ter dinâmica natural para se movimentar, Rui Mourão conta
histórias dos personagens que humanizam a espacialidade urbana e paisagística.
O nome dele era: Benedito Pereira da Silva, mas tornara-se conhecido como Bené da Flauta. Homem de baixa estatura, tez escura, acobreada pelo sol, cabelo crespo e volumoso, deixava a barba crescer e de vez em quando aparecia apenas de bigode, vasto e imponente. Para proteger a calva em forma de meia lua, às vezes usava um quepe à moda militar, às vezes quepe artesanal ou então com um pano amarrado na cabeça, à moda de bandana. Esse é um dos personagens apresentados em Boca de Chafariz, homem admirado por ouropretanos e por turistas. Vivia em companhia de sua irmã Maria, em uma casinha do Morro da Queimada; ou seja, era do morro e também do coração da cidade, a Praça Tiradentes.
Em diversos momentos nos encontramos com Bené da Flauta, ele chegava ao Largo de Coimbra, com a bolsa de ferramentas e esculpia em pedra sabão – bichos e casinhas. Atraia a atenção de todos, as vezes quando passava despercebido, tocava sua flauta mágica, cantava, fazia mil caras e mil bocas. Quando necessário, partia para as acrobacias e executava suas piruetas. Vendia tudo que produzia, negociava o valor das peças e raramente retornava com alguma para casa. Quando alguém gostava e não tinha dinheiro para pagar, levava como lembrança de Ouro Preto. Às vezes aparecia somente ao final da tarde, de banho tomado, calça preta, camisa branca de manga comprida e seu quepe. Tocava flauta e dançava. Atraia muitos turistas e estudantes. Sozinho, Bené da Flauta fazia a festa na Praça Tiradentes. Às vezes bebia demais e ficava caído, junto ao monumento ao alferes Joaquim José da Silva Xavier.
Bené da Flauta esculpindo no Largo de Coimbra, Ouro Preto, 1977.
Fotografia: Luiz Cruz.
No
Cine Ouro Preto, que existiu próximo ao Cine Vila Rica, na Praça Reinaldo Alves
de Brito, no Festival de Inverno da UFMG, assistimos ao filme Dersu Uzala,
dirigido por Akira Kurosawa (1975), história baseada no livro autobiográfico de
Vladmir Arsniev, que conviveu com o caçador mongol, da etnia gold, chamado
Dersu Uzala, que tinha uma relação respeitosa com a natureza, o homem e em
especial com os animais. Depois que ver esse filme, ao nos encontrar com Bené
da Flauta, o associávamos ao caçador mongol, pelo porte, expressões e posturas.
E como sempre gostamos de fotografar pessoas, fizemos alguns registros
fotográficos de Bené da Flauta.
Edificação onde
funciona o Bené da Flauta – Restaurante e Café. Fotografias: Luiz Cruz.
Em
homenagem ao escultor e animador cultural, seu nome denomina um dos
restaurantes mais chiques da cidade, o Bené da Flauta – Restaurante e Café.
Instalado em casarão imponente, ao lado da Capela da Ordem Terceira de São
Francisco de Assis, que se destaca na paisagem. Segundo informação afixada na
fachada do imóvel, foi ali que morou o pintor Manoel da Costa Ataíde, durante o
tempo em executou as pinturas do templo franciscano, dentre elas o teto da
nave, obra prima desse artista, que apresenta estrutura “valente” da arquitetura
fingida.
Jair
Afonso Inácio, Retrato de Bené da Flauta.
O estabelecimento recebeu decoração bonita e agradável. No ambiente maior se encontra o retrato do homenageado, pintado pelo artista, restaurador e professor Jair Afonso Inácio (1932-1982) – que também é personagem no livro Boca de Chafariz; trata-se de pintura de boa fatura e digna de figurar nas melhores pinacotecas de arte brasileira; na escada de acesso ao segundo piso do restaurante, encontra-se uma obra coletiva, um poster, com fotografia de Dimas Guedes, concepção de Guilherme Mansur e impressão de Oscar Fuentes. O poster foi pendurado num lugar difícil para se apreciar e mais ainda para se fotografar.
Poster, com imagem de Bené da Flauta. Acervo: Bené da Flauta – Restaurante e Café,
Ouro Preto. Fotografia: Luiz Cruz.
O
restaurante oferece cardápio com opções da comida regional e internacional,
tudo muito saboroso, mas o melhor mesmo da casa são as sobremesas, bem
caprichadas.
Sobremesas do Bené da Flauta –
Restaurante e Café. Fotografia: Luiz Cruz.
Como
fio condutor narrativo do livro, puxado por Bené da Flauta, o texto perpassa por
diversas pessoas. O autor destacou que “Os nomes dos personagens deste romance
constam do registro civil, mas as ações são imaginárias e as ideias pertencem
ao autor”; então, trata-se de figuras da vida cotidiana ouropretana e ao longo
das páginas, foram inseridos protagonistas de casos curiosos. É exatamente
entre a realidade e a ficção que se encontra no romance uma figura
extraordinária: Orlandino Seitas Fernandes (?-1987), carioca, museólogo, professor,
autor e que dirigiu o Museu da Inconfidência, no período de 1959 a 1973.
Conhecemos
Orlandino aqui em Tiradentes, trazido por Dona Maria do Carmo Nabuco para
montar uma exposição de arte na Casa de Cultura da Fundação Rodrigo Mello
Franco de Andrade, ainda na década de 1970. Homem absolutamente extrovertido,
com presença forte e contagiante. Ao primeiro olhar, percebia-se que era
profundo conhecedor de arte. Juntamente com Jair Afonso Inácio, foram os dois
brasileiros pioneiros no estudo e identificação das obras de imaginária
executada pelo Mestre Aleijadinho – Antônio Francisco Lisboa (1737-1814). Um de
seus artigos: Evolução da Imaginária no Brasil, foi republicado no
Boletim da CEIB, em 1999.
Antiga Cadeia Pública
de Vila Rica, atual Museu da Inconfidência.
Fotografia: Luiz Cruz.
Em Boca
de Chafariz, Rui Mourão apresenta a história desse museólogo e sua passagem
por Ouro Preto. Orlandino Seitas Fernandes administrou o Museu da Inconfidência
num período dramático da ditadura militar, quando tesouraram todos os recursos
para a salvaguarda e manutenção dos bens culturais. Como intelectual expressivo,
com acentuado domínio do seu mister, proferia cursos e palestras em português,
inglês e francês; viu aos poucos o esvaziamento de sua área de atuação direta.
Refugiou-se no álcool e sua vida capotou em severas cambalhotas. Naquele roubo ocorrido
em 1973, quando se subtraíram peças em ouro e prata do Museu do Pilar – roubo
sem solução até o presente, sem a recuperação sequer de única peça. Uma
denúncia “anônima” responsabilizou Orlandino pelo roubo.
O
museólogo foi preso e passou meses no porão da Secretaria do Interior, em Belo
Horizonte, – “porão gelado, tão fundo e escuro como se fosse no próprio centro
da terra” (MOURÃO, 2010, p.203). Passou por tortura psicológica, não teve
espancamento, aliás, seu corpo frágil e esquelético não suportaria
absolutamente nada. Não se alimentava e se esvaia em diarreia interminável. Teve
que conviver entre marginais, no mesmo porão. Ao saber do ocorrido com o amigo,
coube a Dona Maria do Carmo Nabuco intervir pelo museólogo e resgatá-lo da
prisão indevida. Saiu dos porões da ditadura completamente desconstruído, física
e psicologicamente. Voltou para o Rio de Janeiro, onde veio a falecer. Em isto
é inconfidência, Boletim Informativo do Museu da Inconfidência, com o texto
Um talento sobrevoou Ouro Preto, assinado por Rui Mourão, rendeu
homenagem e reconhecimento ao ex-diretor da instituição.
isto é inconfidência, Boletim Informativo do Museu da Inconfidência, 2011. Acervo: Luiz Cruz.
Em
2013, o jornal Estado de Minas, publicou matéria sobre esse roubo:
Nesta segunda-feira, faz 40 anos
que ladrões, de madrugada, levaram 17 peças sacras do museu localizado no subsolo
da igreja, considerada um dos monumentos mais importantes do país. Entre os
objetos furtados havia uma coleção formada por custódia e três cálices de prata
folheados a ouro, de origem portuguesa, usados no Triunfo Eucarístico, em 1733,
a maior festa religiosa do Brasil colonial. Passado tanto tempo, não há, até
hoje, uma única pista do patrimônio, avaliado na época em 6 milhões de
cruzeiros (hoje, algo em torno de R$ 16 milhões) ou condenação dos verdadeiros
culpados, embora o Ministério Público de Minas Gerais continue na busca.
Na mesma
matéria, Carlos José Aparecido de Oliviera, apresentou um recorte de jornal de
1978, a relatar certos temas proibidos pela ditadura militar e dentre eles
aparece o artigo: “Fica proibido toda e qualquer notícia sobre o roubo de Ouro
Preto.” O TEMPO passa, o tempo voa, em 2023, completam-se 50 anos, meio século,
que ocorreu esse roubo. (E como perguntar não ofende: – como
andam as providências para a solução desse roubo? – Como se encontram a atuação
da Polícia Civil e do Ministério Público Estadual, da Polícia Federal e do
Ministério Público Federal para sanar esse caso e devolver as peças a Ouro
Preto?).
Um dia as
peças do Museu do Pilar aparecerão – o TEMPO é implacável!
Entre
tantas histórias de Boca de Chafariz, as páginas sobre o museólogo
Orlandino Seitas Fernandes nos entristecem profundamente. Mas o autor logo
retoma outros personagens e para finalizar a trama, fecha com um diálogo
imaginário do autor com o personagem Benedito Pereira da Silva:
“–
Muito bem, Bené.
–
Maravilha, Bené. [...]
– E as
suas belezas mil?
– É a eternidade que já começou. Só teve começo
não terá fim.”
O
TEMPO que comanda tudo e todos sempre será implacável. Ouro Preto, cidade
Monumento da Humanidade, com seu conjunto arquitetônico e urbanístico barroco,
segue a resistir às intempéries e às inovações de gosto. Por suas ruas,
ladeiras, becos, morros, os personagens passam, deixam suas máculas. Certas
histórias ganharam registros, tantas outras ficaram armazenadas em memórias
pessoais a se consumirem diariamente. Ainda bem que há meios distintos para
registrar a passagem do homem por aqui, seja com a arquitetura, as obras de
arte, ou com a literatura. Boca de Chafariz nos prova isso!
–
Afinal, quem é o autor Rui Mourão?
– Ele
nasceu em Bambuí-MG, localidade que no século XVIII integrava o termo da Vila
de São José, a atual cidade de Tiradentes. Formou-se em Direito pela UFMG e
tornou-se mestre em Literatura Brasileira. Foi professor da UnB e da Tulane
University, em New Orleans. Ao retornar ao Brasil, ocupou o cargo de administrador
executivo da FAOP – Fundação de Arte de Ouro Preto e de diretor do Museu da
Inconfidência. Publicou diversos livros e artigos, dentre ele Jardim Pagão,
O Alemão que Descobriu a América, Servidão em Família, Invenções
no Carrossel e Boca de Chafariz.
Luiz
Antonio da Cruz
REFERÊNCIAS:
BAETA,
Rodrigo Espinha. O barroco, a arquitetura e a cidade nos séculos XVII e XVIII.
Salvador: EDUFBA, 2012.
FERNANDES,
Orlandino Seitas. Evolução da Imaginária no Basil. Boletim do CEIB –
Centro de Estudos da Imaginária Brasileira. Ano 3, Nº X, 1999.
CONDORELLI,
Antônio. Dersu Uzala: Hibridação homem-natureza. Dissertação de
Mestrado, UFRN, Natal, Rio Grande do Norte, 2011.
MIRANDA,
Marcos Paulo de Souza. O Aleijadinho revelado: Estudos históricos sobre
Antônio Francisco Lisboa. Belo Horizonte: Fino Traço, 2014.
MOURÃO, Rui. Um talento sobrevoou Ouro Preto. isto é
inconfidência. Boletim Informativo do Museu da Inconfidência. Ano XIII, Nº
31, 2011, p. 4 e 5.
MOURÃO, Rui. Boca de Chafariz. Belo Horizonte:
Editora da UFMG, 2010.
https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2013/09/01/interna_gerais,442837/roubo-de-pecas-sacras-de-basilica-em-ouro-preto-completa-40-anos-de-impunidade.shtml,
consultado em 28 de fevereiro de 2023.
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