Cândido Portinari, Baile na Roça, 1923, óleo sobre tela,
Brodowski-SP. Procedência: João Cândido Portinari. Fotografia: Luiz Cruz.
Para Maria
Luiza Leão,
pintora e
amiga em comum com Cândido Portinari,
com quem
conviveu e trabalhou.
Entre o cafezal e o sonho
o garoto pinta uma estrela
dourada
na parede da capela,
e nada mais resiste à mão
pintora.
A mão cresce e pinta
o que não é para ser pintado
mas sofrido.
A mão está sempre compondo
Módulo-murmurando
o que escapou à fadiga da
Criação
e revê ensaios de formas
e corrige o oblíquo pelo
aéreo
e semeia margaridinhas de
bem-querer no baú dos vencidos
A mão cresce mais e faz
do mundo-como-se-repete o
mundo que te queremos.
A mão sabe a cor da cor
e com ela veste o nu e o
invisível. [...]
O que era dor é flor,
conhecimento
plástico do mundo.
E por assim haver disposto o
essencial,
deixando o resto aos
doutores de Bizâncio,
bruscamente se cala
e voa para nunca-mais
a mão infinita
a mão-de-olhos-azuis de Cândido
Portinari.
Carlos Drummond de Andrade, A mão a
Cândido Portinari.
A capital mineira, Belo
Horizonte, recebe a exposição Portinari Raros, aberta até 7 de agosto de
2023, no CCBB – Centro Cultural Banco do Brasil, na Praça da Liberdade, com
entrada franca (bb.com.br/cultura). A curadoria da mostra é de Marcello Dantas, com cerca de 200 obras do
artista singular no cenário das artes visuais do Brasil. É oportunidade única
para se apreciar trabalhos do artista que contribuiu sobremaneira para inserir
Minas Gerais no contexto da “modernidade” e conhecer obras raramente exibidas;
além de ser muito didática, através das maquetes pode-se ter ideia das pinturas
inseridas na arquitetura, em edificações brasileiras e do exterior.
Cândido Portinari, Estudo para Guerra, 1954, desenho.
Procedência: João Cândido Portinari. Fotografia: Luiz Cruz.
Cândido Portinari (29/12/1903 - 6/02/1962) nasceu em Brodowski-SP, filho do casal Dona Dominga e Seu Batista, imigrantes, originários de Veneto, região do nordeste da Itália. Cândido foi o segundo do núcleo que teve doze filhos e desde cedo se descobriu “artista”. Mudou-se para o Rio de Janeiro e cursou a Escola Nacional de Belas Artes; em 1923, inscreveu-se no Salão Nacional de Arte com a obra Baile na Roça, que fora recusada. Mas em 1928, conquistou o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro, da Exposição Geral de Belas-Artes, pôde circular pela Europa e residir em Paris. Retornou ao Brasil em 1931.
Faleceu aos 59 anos, em plena
maturidade artística, por consequências da intoxicação com as tintas, mas nos
legou acervo com mais de 5 mil obras – desenhos, pinturas, figurinos, gravuras
e ilustrações. Tornou-se o artista que melhor retratou o Brasil, sua gente e os
seus paradoxos, entre a vida e a morte. Pintou elementos da biodiversidade,
registrou cenas com diversos personagens, dos mais célebres aos retirantes anônimos, com os
seus corpos maculados pelos sofrimentos da seca, da fome e da falta de
perspectiva de vida.
Através de sua arte se
posicionou contra a miséria humana, em especial sobre a guerra. Incentivou a
produção de alimentos e o reflorestamento. Iluminou elementos nativos da flora
e da fauna.
Única escultura produzida por Portinari, exposição
do CCBB, Belo Horizonte.
Fotografia: Luiz Cruz.
Trabalhador incansável,
produziu obras que conquistaram o Brasil e tantos outros países. Porém, antes de mais nada, foi o pintor de
Brodowski, a pequena localidade onde nasceu e viveu sua juventude, com a
família, os amigos, as brincadeiras, os sonhos e os medos. Construiu sua obra,
tudo com raízes profundas, num universo pobre e ao mesmo tempo de uma riqueza
imensurável, aquilo que só é percebido pelos artistas natos e sensíveis.
Conviveu com os expressivos artistas e intelectuais de sua contemporaneidade, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) a Luís Carlos Prestes (1898-1990). Com alguns deles, realizou parcerias, como Oscar Niemeyer e Roberto Burle Marx.
Belo
Horizonte. Fotografias: Luiz Cruz.
João Cândido Portinari, filho único de Portinari acompanhando a
exposição do CCBB, Belo Horizonte. Fotografia: Luiz Cruz.
Portinari foi antes de mais nada um dos desenhistas mais geniais dos últimos tempos, conforme registrado em um dos textos da mostra; com o grafite e o papel executou obras de densidade e de forte impacto visual. Alguns de seus desenhos podem ser apreciados nessa exposição do CCBB. Dentre outras pinturas, lá está o seu quadro Baile na Roça, que esteve desaparecido, foi localizado, inventariado e restaurado pelo Projeto Cândido Portinari (http://www.portinari.org.br), coordenado por seu filho João Cândido Portinari. A mostra exibe ainda o artista gráfico, o figurinista, o pintor abstrato, o retratista de Maria Portinari – sua esposa, seus arranjos florais, as alegorias à biodiversidade e até a presença da “morte”. Toda sua produção se estrutura a partir do desenho e é com ele que a cor trava intenso diálogo e se complementam.
Cândido Portinari. Enterro, óleo sobre tela,
1940, no CCBB, Belo Horizonte.
Procedência: João Cândido Portinari. Fotografia: Luiz Cruz.
Ao contemplar esse conjunto
de obras da presente mostra, cabe-nos indagar quem surgiu primeiro?:
– foi o desenhista ou foi o
pintor Cândido Portinari?
– nenhum, nem outro. Provavelmente,
quem surgiu primeiro deve ter sido o poeta Cândido Portinari.
Só uma alma de poeta
conseguiria perceber, captar, gravar na memória e depois transformar em arte
tantos encantamentos da infância, da vida plena e até mesmo dos flertes com a
morte. Sensível, denso, lírico, expressivo – Portinari – deve ser o mais
completo artista brasileiro moderno.
Em consequências das
enfermidades, seus últimos anos foram dedicados mais intensamente ao desenho e
à poesia. Alguns de seus poemas foram publicados no Correio da Manhã.
Havia a expectativa de se editar o conjunto de seus escritos, mas ele próprio
resistiu. Em obra póstuma, saiu pela Livraria José Olympio Editora: Portinari
Poemas. Uma coletânea que merece leitura atenta, pois o poeta constrói uma trama que ao
ler encontramos na escrita o artista, o homem refinado, das urdiduras, das
formas e das cores. Seu único livro transcende a obra poética, é um objeto
elegante. A produção dessa publicação envolveu um time de peso: José Olympio,
Antônio Callado, Manuel Bandeira, Vinícius de Moraes, Luís Jardim e Enrico Bianco.
Portinari Poemas é de leitura prazerosa e elementar para se entender o
artista/poeta Cândido Portinari:
Num pé de café nasci.
O trenzinho passava
Por entre a plantação. Deu a hora
Exata. Nesse tempo os velhos
Imigrantes impressionavam os recém-chegados.
O tema do falatório era o lobisomem.
A lua e o sol passavam longe,
Mais tarde mudamos para a Rua de Cima.
O sol e a lua moravam atrás de nossa
Casa. Quantas vezes vi o sol parado.
Éramos os primeiros a receber luz e calor.
Em muitas ocasiões ouvi a lua cantar.
Cândido Portinari, O menino e o povoado.
Os inventariantes pedirão conta dos cílios
Apedrejados. Das madeiras inertes e dos cabelos
Perdidos e dos egoísmos. Das penas das aves
Das chuvas inúteis. Dos furacões e dos ventos.
Dos espaços perdidos. Das lágrimas secas
Dos carvões em brasa e das fogueiras de São João.
Das violetas sob a terra nos cemitérios
Das cores claras das moças morenas. [...]
Cândido Portinari, Os Inventariantes.
[...]
Quantas vezes montado
Nas árvores fazia grandes
Viagens. O silêncio no campo
Nos transportava para longe.
[...]
Cândido Portinari, Aparições.
Acervo: Luiz Cruz.
Para quem está em Belo Horizonte, ou quem passar pela cidade, não deixe de ver essa exposição e aproveitar para visitar ou revisitar a Capela de São Francisco de Assis, junto à Lagoa da Pampulha, obra do arquiteto Oscar Niemeyer e ornamentação interna e externa com azulejaria e pinturas de Cândido Portinari, uma das obras primas da dupla de artistas brasileiros consagrados internacionalmente.
Capela de São Francisco de Assis, Pampulha, Belo Horizonte. Projeto
arquitetônico de
Oscar Niemyer e ornamentação
interna e externa de Cândido Portinari, 1944.
Fotografias: Luiz Cruz.
Interior da Capela de São Francisco de Assis,
Pampulha, Belo Horizonte.
Azulejaria e pinturas de Cândido Portinari. Fotografia: Luiz Cruz.
Ano passado, quando se
celebrou o centenário da Semana da Arte Moderna, Belo Horizonte sediou duas
grandes e significativas exposições, uma no Palácio das Artes, com parte do
acervo do BANERJ, com 135 obras de artistas vinculados ao movimento modernista,
sob a curadoria de Marcus Lontra e Viviane Matesco. Integrando essa mostra
estava um belo desenho de Portinari. A outra exposição ocorreu no prédio da Reitoria
da UFMG, Campus Pampulha, com parte do acervo da Fundação Rodrigo Mello Franco
de Andrade, conformado por sua fundadora, Dona Maria do Carmo Nabuco. Os
estudos para a Capela de São Francisco de Assis, da Pampulha, criados por
Portinari integraram essa mostra. E aqui, cabe-nos ressaltar, para cada grande
obra excutada pelo artista de Brodowski, ele criou inúmeros estudos, seja para as
edificações religiosas, ou o Painel Tiradentes – que se encontra no
Memorial da América Latina, em São Paulo, ou mesmo os painéis, Guerra e Paz,
expostos na sede da ONU, em Nova Iorque. Cada detalhe dessas obras foi
estudado detidamente, através dos desenhos.
Fotografia: Luiz Cruz.
Cândido Portinari. O Batismo de Jesus. Grafite e guache sobre papel,
1954. Estudo para a Capela de São Francisco de Assis, Pampulha. Acervo:
Fundação Rodrigo Mello Franco de Andrade, Tiradentes-MG. Fotografia: Luiz Cruz.
Quem perdeu a exposição da
UFMG, de 2022, ainda há tempo para conhecer alguns trabalhos, parte dessa
mostra se encontra atualmente no Museu Casa Padre Toledo, em Tiradentes.
Portinari é puro
encantamento, com suas obras que nos deixam orgulhosos de sermos brasileiros, suas
obras devem ser revisitadas sempre!
Luiz
Antonio da Cruz
Referências:
CRUZ, Luiz
Antonio da Cruz. Tiradentes e o Alferes Tiradentes. Tiradentes: Mandala
Produção: 2022.
https://moinhoamarelo.blogspot.com/2011/05/poema-mao-candido-portinari.html
https://www.museucasadeportinari.org.br/candido-portinari/vida/
PORTINARI,
João Cândido. (et al.). Guerra e Paz –
Portinari. Projeto Portinari. Rio de Janeiro, 2007.
PORTINARI,
Cândido. Portinari Poemas. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio
Editora, 1964.
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