Veiga
Valle – o talentoso escultor,
policromador
e encarnador goiano
O esquecimento, o desapego, a falta de uso fazem que sejam deixados e abandonados. A destruição deliberada e combinada também os ameaça, inspirada seja pela vontade de destruir, seja, ao contrário, pelo desejo de escapar à ação do tempo ou pelo anseio do aperfeiçoamento.
Françoise
Choay, A alegoria do patrimônio, 2006, p.26.
José
Joaquim da Veiga Valle nasceu em 9 de setembro de 1806, no Arraial Meia Ponte,
atual município de Pirenópolis e faleceu a 24 de janeiro de 1874, na Vila Boa,
atual Goiás-GO. Filho de Joaquim Pereira do Vale e Ana Joaquina Pereira da
Veiga; casou-se com Joaquina Porfíria Jardim – filha de José Rodrigues Jardim,
então, presidente da província. Após o matrimônio, já na idade de 34 anos,
mudou-se para Vila Boa, o casal viveu no Largo do Rosário, na casa de número 3.
Tiveram oito filhos: Ângela da Veiga Jardim (1843), José Augusto da Veiga
Jardim (1847), Henrique Ernesto da Veiga Jardim (1849), Joaquim Gustavo da
Veiga Jardim (1850), Maria Adélia da Veiga Jardim (1854), Antônio Benedito da
Veiga Jardim (1855), Manoel da Veiga Jardim (1862) e João Batista da Veiga
Jardim (1867). (SANTOS, 2018, p.38). De sua prole, apenas o filho Henrique da
Veiga Jardim atuou no meio das artes, como entalhador e dourador, que inclusive
trabalhou no estado do Mato Grosso.
Além
de escultor, Veiga Valle atuou ainda no meio político e ocupou vários cargos
públicos e se tornou homem bastante conhecido, sua trajetória na vida política
teve início em 1832, na Vila Meia Ponte, onde também participou da Irmandade do
Santíssimo Sacramento; o mesmo ocorreu após sua transferência para Vila Boa,
chegou a ser vereador, juiz municipal, deputado provincial, alferes e ingressou
na Venerável Irmandade de Nosso Senhor dos Passos.
Fotografia:
MESBM.
Há uma
lacuna documental sobre a juventude e a formação de Veiga Valle. Mesmo a ocupar
cargos, teve boa produção escultórica, a atender às demandas das irmandades e a
particulares, com a execução de imagens de diversas devoções, inclusive de vários
Menino-Deus, em decorrência da tradição goiana de se armar os presépios.
Embora
tenha sido um escultor – ou santeiro – bastante requisitado, após sua morte,
sua história e sua produção artística caíram no esquecimento. Pode ser que a
transferência da capital de Goiás para Goiana tenha influenciado para tal. Depois
de sua morte, o nome Veiga Valle praticamente desapareceu. Somente após a
chegada de João José Rescala (1910-1986), técnico enviado pelo SPHAN, em 1940, que
se organizou a primeira mostra do escultor, na sucursal do Liceu de Goiás.
Veiga Valle, então, tinha tornado-se um desconhecido – “No Brasil não havia
conhecimento da existência deste artista goiano.” (RESCALA, 1982). Outras
exposições com suas obras aconteceram, promovidas pela OVAT – Organização
Vilaboense de Arte e Tradição, sob a responsabilidade de Elder Camargo dos
Passos.
Em
1970, foi realizada a exposição do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
em Brasília, a mostra contou com obras de três escultores expressivos: Antônio
Francisco Lisboa (1737-1814), Francisco Xavier de Brito (?-1751) e José Joaquim
da Veiga Valle (1806-1874). Houve repercussão bastante positiva:
Veiga Valle não teria dado
às suas obras a força de expressão que caracteriza as de Aleijadinho e
Francisco Xavier de Brito. Todavia, essa técnica não desmerece de modo algum o
valor extraordinário desse artista sacro, o qual, sendo um mestre na talha, na
encarnação e na douração, foi, indiscutivelmente, o maior santeiro do Século
XIX. (CORREIO BRASILIENSE, 9 de abril de 1970, p. 14). (SANTOS, 2018, p.106).
Poucos
anos depois, em 1978, a obra do goiano chegaria ao MASP – Museu de Arte de São
Paulo, com a exibição de 15 obras e 50 painéis fotográficos de Pierre Leblond,
com imagens de Goiás. Tantas outras exposições ocorreram e o nome Veiga Valle
acabou por se consagrar, principalmente entre os brasileiros que apreciam a
História da Arte.
Museu de Arte Sacra da Boa Morte, Goiás-GO. Obras de Veiga Valle.
Fotografia:
MASBM.
Principais
exposições da obra de Veiga Valle |
||
Ano |
Cidade |
Local |
1940 |
Goiânia-GO |
Individual – Edifício do Liceu
de Goiás |
1954 |
Goiânia-GO |
Individual, Escola Goiana de
Bela-Artes |
1964 |
Goiânia- GO |
Mostra do Barroco Goiano,
Universidade Católica de Goiás |
1968 |
Salvador-BA |
1º Festival Barroco |
1970 |
Brasília-DF |
SPHAN |
1972 |
Goiânia-GO |
Retrospectiva, Colégio de
Aplicação da UFG |
1976 |
Pirenópolis-GO |
Semana da Arte |
1978 |
São Paulo-SP |
MASP – Museu de Arte de São
Paulo |
2000 |
São Paulo-SP |
Brasil + 500: Mostra do Descobrimento |
2001 |
Goiônia-GO |
Acervo MASBM – Galeria de Arte
da Fundação Jaime Câmara |
Do
apagamento da memória ao reconhecimento, foi uma trajetória longa. Algumas de
suas esculturas foram destruídas no incêndio ocorrido em 24 de março de 1921.
Três foram roubadas: São José de Botas, Santa Luzia e São Sebastião, mas depois
recuperadas. Em 1957, teve a atuação de um antiquário que saiu a comprar
pequenas imagens de uso doméstico, dentre elas obras de Veiga Valle; entrou em
cena, então, o bispo Dom Cândido Penso, que investiu atrás do comerciante e
comprou de volta as peças. Um ano após, o conjunto conformaria parte do acervo
do Museu Diocesano de Arte Sacra. Atualmente, o Museu de Arte Sacra da Boa
Morte abriga diversas obras do escultor goiano.
A obra de Veiga Valle merece ser conhecida e valorizada. Segundo a pesquisadora
Heliana Angotti Salgueiro, o escultor deve ter tido boa formação, embora ainda
não tenha encontrado fonte documental, ela ressalta que em seu domínio técnico
há erudição, por suas formas, soluções aprimoradas e claro, o refinamento.
Outra pesquisadora nos alertou sobre o caso Veiga Valle, “escultor de Goiás
que, em pleno século XIX, trabalhava com características do século XVIII.
Entretando, ele mesmo esculpia e policromava suas imagens, diferentemente dos
costumes do século anterior.” (COELHO, 2017, p.233). Para tais tarefas de
escultor, policromador e encarnador, o mestre artífice teria que passar por
processo de aprendizagem, para conhecer toda a complexidade do fazer de uma
imagem devocional: compreender a proposta do comitente, conhecer sobre
iconografia, selecionar os materiais lenhosos (e outros) – geralmente o cedro,
mas o próprio Veiga Valle trabalhou com madeiras diferentes, usar devidamente
as ferramentas, dominar as proporções e em especial as anatômicas, a
espacialidade, toda a complexidade da policromia e do esgrafismo em ouro e
prata. Não há como esquecer que o sucesso de uma policromia depende do preparo
devido da base e do bolo armênio. Preparar a carnação e usar adequadamente o
brunidor, requer habilidades e domínio técnico. Em Imagem Sacra Brasileira,
livro publicado em 1979, o autor destacou as qualidades das obras de Veiga
Valle:
Sua obra é extraordinária
pelo estilo barroco de grande efeito que imprimiu a suas peças, geralmente
grandes, de igreja, embora atendesse também à procura de seus contemporâneos
que desejavam imagens para seus oratórios domésticos. Elder Camargo Passos,
pioneiro no estudo da obra de Veiga Valle, catalogou até hoje cerca de 180
imagens, desde miniaturas de 6cm até as grandes de igreja. O artista goiano
estofou suas peças com adequada douração e pintura usando numa primeira fase
olhos pintados e mais adiante de vidro, até nos querubins. (ETIZEL, 1979, p.94).
Veiga
Valle construiu sua tipologia escultórica, conforme destacado pela
pesquisadora:
Os rostos das imagens de Veiga Valle assemelham-se uns aos outros, numa beatitude serena e plácida sem êxtase dramático. O realismo e angústia dos Cristos barrocos têm outra feição em Veiga Valle. O cuidado anatômico, o detalhe bem-acabado e a resignação no sofrimento singularizam a expressividade de seus Cristos. Os olhares benevolentes e meigos com que as Virgens fitam o devoto são típicos do imaginário. (SALGUEIRO, 274).
Entre
o Barroco e o Neoclássico, com o Rococó a permear suas soluções, a obra
escultórica de José Joaquim da Veiga Valle é encantadora e o povo goiano está
orgulhoso por ser terra natal deste talentoso mestre da escultura devocional
brasileira. Numa iniciativa da Venerável Irmandade do Senhor Bom Jesus dos
Passos, a programação cultural da efeméride – sesquicentenário, teve início no dia 21 e se
encerrará no dia 27 de janeiro. Hoje, 24, no dia do seu falecimento, a cidade
de Goiás receberá a imagem do Divino Pai Eterno, que lhe é atribuída. Imagem do
Santuário Basílica Pai Eterno, em Trindade-GO, a única basílica no mundo
dedicada ao Divino Pai Eterno e que atrai milhares de devotos anualmente.
Amanhã ocorrerá uma mesa redonda com os principais estudiosos da vida e da obra de Veiga Valle: Ana Carolina Cruz, Elder Camargo dos Passo, Heliana Angotti Salgueiro, Recírio Guerino, com a mediação de Fernando Martins dos Santos. Evento imperdível e oportunidade única para compreender ainda mais a relevância do escultor goiano no cenário artístico nacional.
Muitos
parabéns aos organizadores, aos participantes, aos apoiadores e aos pesquisadores. A memória de
José Joaquim da Veiga Valle e sua produção escultórica merecem toda a atenção,
proteção e divulgação.
Luiz
Antonio da Cruz
Referência:
CHOAY, Françoise. A alegoria do
patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade, UNESP, 2006.
COELHO, Beatriz. (org.) Devoção e
Arte – Imaginária Religiosa em Minas Gerais. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2017.
ETZEL, Eduardo. Imagem sacra
brasileira. São Paulo: Edições Melhoramentos, Editora da Universidade de
São Paulo, 1979.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centáruo, 2003.
SALGUEIRO, Heliana Angotti. A singularidade
da obra de Veiga Valle. Goiás: Universidade Católica de Goiás, 1983.
SANTOS, Fernando Martins dos. Da
morte do homem ao nascimento do artista (1874-1983). Dissertação de
mestrado apresentada junto ao Programa de Pós-graduação TECCER. Anápolis,
Universidade Estadual de Goiás, 2018.
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