A CRUZ DO CARTEIRO
E A SERRA DE SÃO JOSÉ
Para Yves e Dalma (in
memoriam)
Cruz do Carteiro, Serra de São José, Tiradentes-MG, 3 de maio de 2024. Fotografia: Luiz Cruz.
O
Arraial de Santo Antônio foi instalado entre dois elementos geográficos muito
expressivos, o Rio da Mortes e a Serra de São José. Desde os anos finais do
século XVII, os paulistas já vasculhavam a região à procura de ouro. Ao ser
elevado à vila, em 19 de janeiro de 1718, a localidade passou a ser denominada São
José. A busca do metal precioso movimentou a região e para cá foram trazidos
milhares de escravizados, sequestrados em diversas nações africanas. O trabalho
pesado de revirar a terra, percorrer rios de águas gélidas, cavar galerias, enfrentar
horas infindáveis de trabalho e subcondições gerais, ficou a cargo do povo
preto.
Já no
século XIX, tudo já tinha sido revirado, quando passaram por São José alguns
viajantes estrangeiros, eles deixaram relatos expressivos sobre a Paisagem
devastada, em consequência das atividades da mineração aurífera.
De
todos os viajantes que circularam por aqui, o irlandês reverendo Robert Walsh
(1772-1852), autor de Notícias do Brasil (1828-1829), foi quem aqui
permaneceu por temporada maior, porque naquele período “É nessa serra que a
‘General Mining Association’ empreende a exploração do ouro, através de
escavações, túneis e galerias”. (WALSH, 1985, p.65). Segundo ele, o primeiro
local a se encontrar ouro “foi no Ribeirão, um pequeno riacho que vai desaguar
no Rio das Mortes” – então, no Ribeiro de Santo Antônio, deve ter sido o
primeiro ponto de descoberta de ouro na região.
O
viajante irlandês constatou que toda atividade mineradora dependia
exclusivamente dos braços dos escravizados, inclusive quando ocorria o
alagamento das galerias:
Tentou-se o emprego de mecanismos para interromper o fluxo de água, quando necessário, mas eles se mostraram tão difíceis de manejar que foram abandonados, sendo substituídos por cinquenta ou sessenta escravos. Jamais vi uma roda na região, ou qualquer outro meio de facilitar o trabalho, nem mesmo uma carroça ou carrinho de mão. São os infortunados escravos que transportam o cascalho ou os detritos na cabeça, em pequenos e toscos caixotes, subindo com grande risco as íngremes encostas; no entanto, uma roldana e um balde, ou um plano inclinado, teriam poupado parte desse trabalho. (WALSH, 1985, p.66).
O
reverendo observou tudo das atividades garimpeiras, até as ferramentas, como o
caburé e a bateria, indispensáveis para a tarefa. Alertou sobre o uso do
mercúrio, no processo de amalgamação, manipulado pelos escravizados com as próprias
mãos, sem nenhuma proteção.
Walsh participou das reuniões familiares na vila e em uma delas teve música, conforme o costume local:
A orquestra consistia de cerca de doze músicos, negros e mulatos, que tocavam clarineta e trompa, comandados pelo digno padre, que nessa ocasião tocou flauta. Fomos brindados com o hino nacional brasileiro, cantado com grande entusiasmo por todos os presentes, bem como com duetos entre um coronel, um homem de oitenta anos e um capitão. À meia-noite nós nos retiramos, sendo acompanhados até em casa pelos músicos ao som do hino nacional. (WALSH, 1985, p.66).
O
fazer música era também uma atividade exercida pelos negros e mulatos. Naquele
período, a colônia brasileira já produzia talentos musicais, especialmente em
Minas Gerais.
Era
nas matas subsistentes da Serra de São José que os escravizados se refugiavam.
Robert Walsh encontrou diversos vestígios de fogueiras deixados por eles (1985,
p.111). Ao longo do bloco rochoso, entre os vales da serra, os escravizados
foragidos poderiam se esconder e se proteger.
Ao
atravessar a Serra de São José, o irlandês fez o primeiro registro sobre a
“Cruz do Carteiro”, um dos pontos mais estratégicos do caminho calçado por enormes
blocos rochosos: “Do outro lado o declive era mais atenuado. Ao começarmos a
descer a encosta, a primeira coisa que vimos foi uma cruz tosca, fincada
numa rocha nua, indicando que li havia sido cometido um assassinato”. O
viajante anotou sobre outros atentados ocorridos nas proximidades, ao Sr.
Campos e a um homem que “havia recebido a incumbência de levar algumas cartas
urgentes resolveu passar pelo alto da montanha a fim de encurtar caminho”. (WALSH,
1985, p.64, grifo nosso). Como em outras serras mineiras, os caminhos antigos
acabaram bastante perigosos para os transeuntes.
Das
atividades minerárias exercida pelos escravizados na Serra de São José ainda
subsistem diversos vestígios, como os monturos, mundéus, canaletas, betas,
arrimos, pilão de soca, tanques, canoas e tantos outros, a nos provar que São
José foi grande produtora de ouro e um dos locais mais explorados a Serra de
São José.
Muito
antes da passagem do revendo Walsh pela Trilha do Carteiro, lá já se encontrava
a cruz, a indicar um dos assassinatos ocorridos há tempos distantes. O IHGT -
Instituto Histórico e Geográfico de Tiradentes tem mantido a cruz no mesmo
local, onde se acabou por formar um grande monte de pedras. Segundo a tradição,
cada um que por lá passar, deve atirar uma pedra ao pé da cruz, para se
proteger e ainda fazer um pedido. Com o passar das décadas, o monte de pedras só
tem aumentado.
Devido
às intempéries, a cruz precisa ser substituída de tempos em tempos. Na última
substituição, realizou-se mobilização da comunidade e um grupo subiu a Serra de
São José para instalar a nova cruz, feita por Rogério Paiva. Foram bons
momentos para se rememorar a história, os registros de Walsh e a necessidade de
se preservar o nosso maior bem ambiental – a nossa amada serra.
Rogério Paiva, do IHGT, com a cruz que confeccionou para a troca na Serra de São José, 2010. Fotografia: Luiz Cruz.
Concentração para a caminhada da Troca da Cruz do Carteiro, 2010. Fotografia: Luiz Cruz.
Caminhada Troca da Cruz do Carteiro, na Serra de São José, 2010. Fotografia: Luiz Cruz.
Troca da Cruz do Carteiro, Serra de São José, 2010. Fotografia: Luiz Cruz.
Os mistérios a envolver o assassinato de um estafeta no alto da Serra de São José, levou o escultor Marcelo Duarte a produzir uma obra curiosa. Executada em jacarandá, o personagem carrega sua maleta de mão, com as correspondências e tem um enorme punhal cravado às costas. Durante anos seguidos, ouvimos as histórias resgatadas e reconstruídas por Marcelo Duarte, também conhecido como Marcelo Raizeiro. Tudo ganhou clima cinematográfico naquele cenário exuberante, entre os dois biomas: a Mata Atlântica e o Cerrado. No bloco rochoso, o campo rupestre, repleto das nossas riquezas da flora e da fauna e bem no centro da serra está a Cruz do Carteiro.
O Carteiro. Escultura em jacarandá, Marcelo Duarte, década de 1980. Acervo e fotografia: Luiz Cruz.
O Carteiro, detalhe. Escultura em jacarandá, Marcelo Duarte, década de 1980. Acervo e fotografia: Luiz Cruz.
Escultor,
raizeiro e contador de casos – Marcelo Duarte deixava o casal Yves Alves e
Dalma fascinados com os “causos”. Eles sempre recebiam o artista para ouvir as histórias
fabulosas, a envolver as aventuras antigas e os segredos das plantas de uso
medicinal tradicional.
Marcelo
Duarte se casou com Iracema, que fora criada pela avó, a Dona Ester – figura
das mais carismáticas de todos os tempos de Tiradentes. Ela foi agricultora e
parteira das mais respeitadas e solicitadas da região. Por suas mãos, muitos
tiradentinos vieram ao mundo. O artista visual Fernando Rocha Pitta pintou um
quadro com a figura de Dona Ester, como se o bebê estivesse preso e a parteira
dando-o a liberdade.
A parteira Dona Ester, pintura de Fernando Rocha Pitta, década de 1980. Acervo IHGT. Fotografia: Luiz Cruz.
Pitta
pintou outros personagens, dentre eles o Pedro Gameleiro, que muito jovem fugiu
da Fazenda do Mosquito e foi viver em um loca da Serra de São José. Com o
passar do tempo, chegou e acabou por ser um dos primeiros moradores do
Cascalho, local ermo da cidade, que fora todo vasculhado pela mineração
aurífera.
Em
Minas se mantém a tradição de enfeitar a cruz na véspera do dia 3 de maio, que
é o Dia de Santa Cruz, quando a mãe do imperador Constantino, que veio a ser
Santa Helena, encontrou em Jerusalém os fragmentos da cruz em que Cristo esteve
crucificado, fato ocorrido no século IV. Posteriormente, a Igreja transferiu a
comemoração para o 14 de setembro, como o Dia da Exaltação da Santa Cruz.
Segundo o historiador Alex Bohrer, de Ouro Preto-MG, ressalta: “Apesar de hoje oficialmente o dia de
Santa Cruz ter sido transferido para setembro, por vontade do Vaticano, os
mineiros não ligam, e enchem maio de colorido”. O historiador que é filho de
Dona Helena, como o imperador Constantino, nos lembra todos os anos das cruzes
ornamentadas por sua mãe. Assim, acontece na antiga Vila Rica, na sede e nos
distritos, onde os cruzeiros são enfeitados e o povo mantém a forte devoção à
Santa Cruz. Os cruzeiros ficam coloridos e alegram a Paisagem ouropretana.
Cruz
enfeitada por Dona Helena, 2024. Ouro Preto-MG. Fotografia: Alex Bohrer.
Cruzeiro
do Alto das Cabeças, Ouro Preto-MG, 2023. Fotografia: Luiz Cruz.
Subir cedinho para enfeitar a Cruz do Carteiro é uma dádiva, porque torna-se possível apreciar uma Paisagem deslumbrante. Na mata, os primeiros raios de sol fazem desenhos que aos poucos se transformam num espetáculo de luz e sombra. O colchão de nuvens desenrola sobre a cidade. Tudo desaparece na vastidão das montanhas e quando o sol aparece no horizonte, aos poucos surge um dos conjuntos arquitetônicos mais imponentes do período colonial brasileiro – Tiradentes. É o espetáculo da natureza, associado à arquitetura, história, memória, arqueologia, biodiversidade e tradição.
Mata Atlântica do sopé da Serra de São José, com os primeiros raios de sol, 2 de maio de 2024. Tiradentes-MG. Fotografia: Luiz Cruz.
Paisagem do alto da Serra de São José, Tiradentes-MG, 2024. Fotografia: Luiz Cruz.
Cruz do Carteiro, alto da Serra de São José, Tiradentes-MG, 2024. Fotografia: Luiz Cruz.
A Trilha do Carteiro acabou de passar por
manutenção pela equipe do IEF-MG, que é o gestor das unidades de conservação da
Serra de São José, da APA, do Refúgio de Vida Silvestre e do Mosaico. Trabalho necessário
para a circulação e segurança dos usuários do caminho tricentenário, ainda para
a prevenção de incêndios florestais. Toda e qualquer intervenção nas trilhas da
Serra de São José só podem ocorrer de acordo com o seu gestor, o IEF-MG.
Tivemos o prazer em registrar a equipe do órgão após os trabalhos que deixaram
a trilha limpa e mais segura.
Equipe do
IEF-MG que fez a limpeza da Trilha do Carteiro. Trabalho necessário para a
manutenção do caminho antigo, 2 de maio de 2024. Fotografia: Luiz Cruz.
Na noite de 2 de maio, aos poucos as cruzes foram
substituídas nas portas das casas e se renovou o costume. Segundo a lenda, a
cada casa que se enfeita a cruz, na madrugada, Nossa Senhora passa pelas ruas a
abençoar os seus moradores.
Cruz na
porta, Rua Direita, Tiradentes-MG, 2024. Fotografia: Luiz Cruz.
Você não tem habilidades para ornamentar uma
cruz, não tem problema, em Tiradentes você pode encontrá-las feitas por Dona
Carmelita, Dona Erci, Dona Lilia Fonseca e Dona Jacqueline Faria. São
verdadeiros mimos, que podem ser colocados em sua porta. Caso passar o dia, não
tem problema, converse com Nossa Senhora, ela é Mãe e compreenderá que por
algum motivo se esqueceu de enfeitar a cruzinha da porta principal da casa. E
assim seguimos a manter a tradição. Viva a Santa Cruz, o maior símbolo do
cristianismo!
Referência:
CRUZ, Luiz Antonio da. Recortes de Memórias.
Tiradentes: IHGT, 2016.
CRUZ, Luiz Antonio da. BOAVENTURA, Maria José. Memória e
Tradições Populares. Educação
Patrimonial em Tiradentes.
Tiradentes: IHGT: 2016.
Devotos celebram o Dia de Santa Cruz. Jornal Nacional.
ttps://saojoaodelreitransparente.com.br/works/view/897
Exposição. Cruzes e Cruzeiros de Luiz Cruz. 3 de
Maio a 3 de Junho. https://saojoaodelreitransparente.com.br/events/view/2309
Parabens e obrigada pelo relato. Amo suas historias e estorias ! 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼
ResponderExcluirHeloisa, muito obrigado por sua presença aqui. As Cruzes conformas aspectos significativos da nossa cultura e a Serra de São José com a Cruz do Carteiro são um espetáculo à parte. Abraço amiga
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