Chafariz de São José
patrimônio cultural luso-brasileiro
em 1749 nossos escravos não acorreram sob as armas
reino buscando água para nossas fantasias
nossas
bestas não levamos para sob nossa imponderável
carga
saciarem seu metafórico silêncio
em 1984
as águas do tempo reconciliam nosso tortuoso
comércio
de uma noite de verão
às três
gárgulas expomos as nossas, desenhadas pelo
século
Júlio Castañon Guimarães, Chafariz de São José
Chafariz
de São José & Bosque da Mãe D’Água. No dia 26 de julho de 2024, na parte da
manhã, foi realizada vistoria no Bosque da Mãe D’Água pela Equipe do Escritório
Técnico do IPHAN em Tiradentes – com a participação do José Maurício –
funcionário e técnico, de Ayumi Tsuru – mestranda do curso de Mestrado
Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural do IPHAN, Pedro Pereira –
estagiário do ETT, graduando em Arquitetura e Urbanismo da UFSJ e o convidado Luiz
Cruz – tiradentino, historiador, doutor e mestre em Arquitetura e Urbanismo,
com estágio pós doutoral em História, pela UFMG e especialista em Administração
e Manejo de Unidades de Conservação, pela UEMG/USFish. O objetivo foi avaliar a
situação de conservação do aqueduto no Bosque da Mãe D’Água e referenciar os
vestígios arqueológicos da área. Na região do Bosque foram extraídos blocos
rochosos para as edificações da cidade. Lá estão os elementos de um “pocinho”,
ponto de corte e desbastes iniciais dos blocos, antes de serem levados para os
campos de obras. O “pocinho” do Bosque da Mãe D’Água foi identificado pelos
professores Marcos Tognon e Meire Cardoso, da Unicamp – são pontos de
expressivo interesse por nos indicar exatamente onde foram extraídas as rochas a
serem empregadas nas edificações locais, com o emprego de mãos e de braços dos
escravizados, que executavam trabalhos árduos e pesados.
Aqueduto do Chafariz de São José, Bosque da Mãe D’Água. Tiradentes. Fotografia: Luiz Cruz.
Aqueduto do Chafariz de São José, Bosque da Mãe D’Água. Tiradentes. Fotografias: Luiz Cruz.
Das nascentes até as gárgulas, as águas são conduzidas pelo aqueduto de pedras, que no momento apresenta vazamentos. Além disso, pelo menos nos últimos vinte anos, registramos a diminuição do fluxo de água no Chafariz e no Córrego do Chafariz, que deságua no Ribeiro de Santo Antônio e este no Rio da Mortes, a compor a Bacia do Rio Grande. No período da seca, para manter a oxigenação e o nível da água, precisamos reabastecer os tanques, inclusive para evitar a mortandade dos peixes que lá vivem. Anteriormente, contávamos com o apoio do Corpo de Bombeiros Voluntários e agora com o apoio da Defesa Civil de Tiradentes para este suprimento.
Corpo de Bombeiros Voluntários de Tiradentes a abastecer os tanques do Chafariz de São José, em 2016. Fotografia: Luiz Cruz.
O Bosque
da Mãe D’Água está fechado para a visitação e seu projeto de restauração se
encontra em estudo – trata-se de iniciativa da Secretaria de Cultura de
Tiradentes, sob a coordenação do Sr. Sérvulo Matias.
O Chafariz – um bem em uso
No Largo do Chafariz, ocorriam encontros dos escravizados nos finais de semana, eles batiam caixas e dançavam, segundo os registros do Reverendo Robert Walsh (Notícias do Brasil 1828-1829). De outras atividades dos escravizados e alforriados subsistem marcas nos muros dos tanques, os desgastes por se amolar facas e ferramentas. Nas Posturas Municipais e Políticas da Câmara da Villa de São José, de 1829, registraram as penas para quem fizesse este uso – o escravizado poderia receber açoites e até ser preso por desobediência.
Marcas deixadas pelos escravizados, no muro do tanque do Chafariz de São José, 2024. Tiradentes. Fotografia: Luiz Cruz.
O Chafariz de São José era ponto de encontro familiar, para namorar, passear e fazer os registros fotográficos de amigos. Ali ocorreram diversas queimas de “Judas”, com a montagem da “Chácara do Judas” e a leitura do seu testamento. Até comícios políticos foram realizados naquele largo. Ele foi também cenário para documentários, filmes, minisséries e reportagens. Espaço inspirador para pintores, desenhistas, gravadores, seresteiros, cronistas, poetas e fotógrafos.
Encontro no Chafariz de São José, década de 1960.Fotografia de autoria não identificada. Acervo: Luiz Cruz.
Gravação do filme Os Saltimbancos Trapalhões em Tiradentes, Largo do Chafariz, 1981. Fotografia acervo de Gilson Resende, cópia acervo Luiz Cruz.
No
Bosque da Mãe D’Água predomina a Mata Atlântica – bioma espetacular por abrigar
diversas espécies como a Heteragrion tiradentense, libélula registrada
pela primeira vez em Tiradentes e tantas outras da fauna e da flora podem ser
observadas lá.
Borboleta (Archeoprepona chalciope) na Trilha do Bosque da Mãe D’Água, Tiradentes. Fotografia: Luiz Cruz.
Na
vistoria da equipe do IPHAN, fotografamos duas espécies, uma bela borboleta do Gênero Preponini (Archaeoprepona chalciope) e uma
serpente, a falsa jararaca, também conhecida por boipeva (Xenodon neuwiedii). Esta serpente não é peçonhenta, mas facilmente
confundível com as do grupo dos Bothrops jararaca – as responsáveis por
69,3% dos acidentes ofídicos registrados no Brasil.
Serpente, boipeva, falsa jararaca (Xenodon neuwiedii), registrada na Trilha do Bosque da Mãe D’Água, Tiradentes. Fotografia: Luiz Cruz.
As serpentes procuram as aberturas das matas para repousarem, no caso do Bosque da Mãe D’Água, elas se camuflam entre as folhas acumuladas ao longo da trilha. Ao serem molestadas refugiam-se, mas em caso de jararacas verdadeiras, as mais ativas, elas podem reagir e atacar. Então, para circular pelo Bosque da Mãe D’Água é preciso precaução; manipular resíduos dentro do aqueduto requer atenção e cuidados redobrados, principalmente pela ocorrência das serpentes. Gratidão ao Marcos Magalhães de Souza, biólogo, professor doutor, coordenador do Laboratório de Zoologia, do IF de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas, Campus Inconfidentes, que identificou a serpente. Gratidão ao biólogo Ello Brasil que identificou a borboleta. Marcos Magalhães e Ello Brasil são nossos parceiros em projetos sobre a Serra de São José.
Desenho de Roberto Burle Marx para do agenciamento para o Largo do Chafariz. Década de 1980, acervo: IHGT. Informativo do SPHAN, acervo: Luiz Cruz.
O Chafariz
de São José tem tombamento individual pelo IPHAN, desde 1949. Não há como
pensar na proteção do monumento sem considerar sua implantação urbanística,
arquitetônica e o meio ambiente. Neste caso, torna-se elementar considerar a
Rua do Chafariz, o Largo do Chafariz – agenciado pelo artista e paisagista de
fama internacional – Roberto Burle Marx, a Rua Francisco Cândido Barbosa, o
Córrego do Chafariz, o Bosque da Mãe D’Água, a Serra de São José, a Paisagem e
o próprio elemento arquitetônico Chafariz de São José – ambos compõem um
conjunto único, extraordinário, que possibilita inúmeras leituras e nos prova
que as edificações luso-brasileiras setecentistas são fabulosas, executadas
dentro dos princípios do decoro e da formosura.
O
calçamento do entorno do Chafariz é remanescente do século XVIII, com seixos de
rio e fragmentos de xisto verde, como era o das ruas principais da cidade e
conforme se observa em fotografia do Atlas dos Monumentos Histórico e
Artístico do Brasil, de autoria do professor Augusto Carlos da Silva Telles.
Atualmente os elementos pétreos do calçamento sofrem desgaste acentuado em
consequência do trânsito intensificado, sobremaneira pela circulação de
veículos pesados. O ideal seria repensar a mobilidade para se preservar melhor
o conjunto arquitetônico e urbanístico, principalmente para a área de proteção
máxima, encontrar soluções mais adequadas, até mesmo para a coleta de lixo.
Além de assegurar a fiscalização rotineira, com orientação e responsabilização.
Embora haja legislação municipal a proibir a circulação de veículos pesados pela
área de preservação máxima, mas não colocada em prática.
Chafariz de São José, com destaque do calçamento antigo. Fotografia do Atlas dos Monumentos Histórico e Artísticos do Brasil, década de 1970. Acervo: Luiz Cruz.
Manobra de caminhão na esquina da Rua Ministro Gabriel Passos com a Rua do Chafariz, em julho de 2024. Fotografia: Luiz Cruz.
Caminhão coletor de lixo, ao passar pelo Largo do Chafariz, em julho de 2024. Fotografia: Luiz Cruz.
Torna-se
necessário, ainda, a instalação de câmeras para propiciar mais segurança,
porque constantemente o monumento tem sido vandalizado, principalmente com
pixações. A Prefeitura tem atendido prontamente nossas solicitações para a
limpeza imediata para evitar que estes atos e vestígios sirvam de precedentes
para outras ações comprometedoras. Nos casos mais graves o IPHAN foi acionado e
logo tomou as providências para os reparos. Infelizmente, as câmeras acabaram
por se consubstanciar em instrumentos necessários para a proteção dos bens
culturais; como ocorre com as edificações religiosas, as civis também precisam
destes equipamentos.
É
impossível abordar este conjunto sem vinculá-lo à imaterialidade – à cultura, à
história e à tradição. O Chafariz de São José foi o fornecedor de água potável
para a comunidade. Água para beber, cozinhar e higiene pessoal, captada de suas
gárgulas. Água no tanque para se lavar roupas e o amplo gramado para quará-las e
ficarem bem alvas. Água para os animais, especialmente os burros e mulas das
tropas que chegavam ou partiam. O Chafariz de São José foi ponto de encontro de
inúmeros tiradentinos, por diversas gerações consecutivas, tanto para o
trabalho quanto para o lazer e o entretenimento. Muitas senhoras lá lavavam
roupas para famílias e com os recursos recebidos conseguiram criar e prover
suas proles, com o trabalho digno e tão necessário.
Dona Laurita e Dona Judith lavando roupas no tanque do Chafariz de São José. Fotografia: Luiz Cruz, década de 1980.
Foi palco
de eventos culturais, um deles o espetáculo teatral de uma companhia da França,
promovido pelo Festival de Inverno da UFMG, na década de 1970. Depois, tantos
outros ocorreram, como as atividades do Verão Cultural de Tiradentes e
merece destaque os saraus poéticos realizados pelo Instituto Cultural
Biblioteca do Ó. O pátio do Chafariz, murado e com bancos é cenário perfeito
para as atividades artísticas.
O Chafariz de São José é espaço adequado para uma excelente aula de campo, com a possibilidade de permear temas distintos e interdisciplinares. Alunos de todos os níveis de formação de várias partes do Brasil visitam e ali têm aulas memoráveis. Dentre os monumentos arquitetônicos locais, provavelmente o Chafariz seja o mais visitado de todos, milhares e milhares de turistas o visitam ao longo de cada ano, porque é exemplar único e se tornou um dos símbolos da cidade.
Atividade do Verão Cultural de Tiradentes, década de 1980, evento de Teatro de Rua, coordenado por Paulo Polika e Nado Rohmann. Fotografia: Eros Conceição, acervo: Luiz Cruz.
Atividade do Verão Cultural de Tiradentes, década de 1980, evento de Teatro de Rua, coordenado por Paulo Polika e Nado Rohmann. Fotografia: Eros Conceição, acervo: Luiz Cruz.
Aula de campo no Chafariz de São José, com o professor dr. Antônio Gilberto Costa, da UFMG, Projeto de Educação Patrimonial, 2015. Fotografia: Luiz Cruz.
Durante
anos consecutivos, blocos carnavalescos passaram pelo Chafariz de São José, o
pessoal se refrescava e descansava um pouco da folia. A Festa de São José,
patrono da edificação e segundo padroeiro da antiga Vila de São José era
realizada lá, com pompa e significativa participação da comunidade,
principalmente no período do padre José Bernardino Siqueira.
Bloco Reviver, da Escola Estadual Basílio da Gama, Chafariz de São José, década de 1990. Foto: Luiz Cruz.
Bloco Reviver, da Escola Estadual Basílio da Gama, Chafariz de São José, década de 1990. Foto: Luiz Cruz.
Sarau poético temático promovido pelo Instituto Cultural Biblioteca do Ó, Chafariz de São José, década de 2000. Foto: acervo ICBO.
Uma das missas inculturadas celebradas no Chafariz de São José, Tiradentes, década de 2000. Fotografia: acervo do ICBO.
Uma das missas inculturadas celebradas no Chafariz de São José, Tiradentes, década de 2000. Fotografia: acervo do ICBO.
As missas
inculturadas celebradas no pátio do Chafariz conseguiram nos emocionar por
marcar o monumento como ponto estratégico de trabalho, lazer e alegria dos
escravizados, foram momentos de fé e de religiosidade, que congregaram dois
ternos de congados, o de São Benedito, de Tiradentes e o de Nossa Senhora do
Rosário e São Miguel, de Santa Cruz de Minas.
Nos grandes
eventos que a cidade abriga ao logo do ano, o Chafariz precisa de proteção
especial, ocasiões em que ocorre o risco de depredação, conforme já acontecido.
O Chafariz de São José, com o passar do tempo, perdeu sua função sociocultural, porque na contemporaneidade praticamente todos os moradores recebem água tratada em suas casas e têm como lavar suas roupas, sem precisar de deslocamentos. Há que se considerar o severo processo de gentrificação da cidade, os habitantes estão cada vez mais distantes dos bens culturais que imprimem sua identidade. Consequentemente, este monumento acabou perdendo expressividade. Para que seja apropriado, protegido e amado pelos tiradentinos, torna-se necessário o desenvolvimento de atividades culturais e recreativas para envolvê-los. Afinal, somos privilegiados por termos este bem tão fabuloso, impregnado de conhecimentos construtivos e urbanísticos, contemplado pela exuberância da Mata Atlântica, com histórias, memórias, além de possibilitar e ressaltar aspectos do nosso precioso patrimônio humano.
Luiz
Antonio da Cruz
Referências:
CRUZ, Luiz Antonio da. Chafariz de São José
da cidade de Tiradentes e sua intervenção de restauro. Geonomos, 24(2),
180-184, CPMTC-Centro de Pesquisa Professor Manoel Teixeira da Costa, Instituto
de Geociências, Universidade Federal de Minas Gerais, 2016.
CRUZ, Luiz Antonio da, BOAVENTURA, Maria José. Glossário do Patrimônio de Tiradentes. Tiradentes: IHGT, 2015.
CRUZ, Luiz Antonio da, BOAVENTURA, Maria José. Memória e Tradições Populares. Tiradentes: IHGT, 2015.
CRUZ, Luiz Antonio da. Serra de São José - Educação Patrimonial. Tiradentes: Mandala Produção, 2016.
GUIMARÃES, Júlio Castañon. Matéria e Paisagem. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998.
Posturas Municipais e Políticas da Villa de São José. Manuscrito, 1829. Acervo: IHGT.
SILVA, Ello Brasil Ribeiro da. CRUZ, Luiz Antonio da. Borboletas da Serra de São José – Campos Rupestres. Tiradentes: Mandala Produção, 2020.
SILVA TELLES. Augusto Carlos da. Atlas dos Monumentos Históricos e Artísticos do Brasil. Rio de Janeiro: FENAME/DAC, 1975.
WALSH, Robert. Notícias do Brasil
(1828-1829). Belo Horizonte: Editora Itatiaia, São Paulo: Ed. da
Universidade de São Paulo, 1985.
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