AVES DA SERRA DE SÃO JOSÉ

 

Todos esses que aí estão

Atravancando meu caminho,

Eles passarão...

Eu passarinho!


Mario Quintana (1906-1994)

                                       

 

Campainha-azul (Porphyrospiza caerulescens) – Serra de São José. Fotografia: Cláudio Lopes. 

 

O primeiro registro sobre as aves brasileiras ocorreu antes dos portugueses colocarem os pés no solo, o qual, inicialmente, denominaram Terra de Vera Cruz. A acompanhar Pedro Álvares Cabral, vinha Pero Vaz de Caminha, o escrivão da frota, que por acaso aportara por aqui. Caminha escreveu:


E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam furabuchos. Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! A saber, primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz! (1963).

 

A carta de Caminha foi enviada ao rei D. Manuel (1469-1521), apelidado de “O Venturoso”, a comunicar-lhe o descobrimento das novas terras. A carta se encontra armazenada no Arquivo da Torre do Tombo, que é o Arquivo Nacional de Portugal, sediado em Lisboa. No documento ficou ainda anotado:


Esse que o agasalhou era já de idade, e andava por galanteria, cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia seteado como São Sebastião. Outros traziam carapuças de penas amarelas; e outros, de vermelhas; e outros de verdes. (1963).

 

Com certeza, muito antes de 1500, os povos originários já mantinham relação muito estreita com as aves, as utilizavam como animais domésticos, como caça e com suas penas coloridas confeccionavam os adereços, até os tecidos, conforme citado acima.



                         

Carta de Pero Vaz de Caminha, com informações sobre as aves da terra descoberta. Porto Seguro, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500. A Cosmografia Universal de André Thevet, Cosmógrafo do Rei, publicada em 1575.


Entre 1555 e 1556, o frade franciscano André Thevet esteve no Brasil e escreveu o livro A Cosmografia Universal de André Thevet, Cosmógrafo do Rei, publicado em 1575, em Paris. O franciscano nos legou um relato precioso sobre sua percepção daquele período. Um dos capítulos do livro tem o seguinte título: Dos animais e pássaros desta terra, como fazem fogo e a maneira de comerciar. A obra se tornou mais atraente pelas curiosidades e pelas ilustrações. O autor destacou que:


O maior tráfico que se faz nesta terra é o de plumas de avestruz, guarnições de espadas feitas de belos penachos, plumagens muito delicadas, macacos e papagaios trazidos de cem ou cento e vinte léguas de distância do interior do país. (2009, p. 134).

 

Uma das aves que mais chamou atenção de Thevet foi o tucano, segundo ele, “o Toucan é monstruoso e disforme, pois tem o bico quase mais grosso e comprido que o resto do seu corpo”. Além de destacar a plumagem colorida, salientou a importância desta ave como dispersora de sementes. Quando come a fruta, “bem digerida e amadurecida, ou não, a semente não precisa ser levada para a terra e, como se tivesse sido semeada, nasce a planta” [...].

 

Desenho do tucano. A Cosmografia Universal de André Thevet, Cosmógrafo do Rei, Paris, 1575.

 

Nasceu na antiga Vila de São José, a atual cidade de Tiradentes, José Veloso Xavier. Seus pais foram José Veloso do Carmo e Rita de Jesus Xavier – irmã de Antônia da Encarnação Xavier, a mãe do Alferes Joaquim José da Silva Xavier, alcunhado por Tiradentes e o líder da Conjuração Mineira. José Veloso ingressou no Convento Franciscano de São Boaventura de Macuco, no interior fluminense, e se ordenou, quando adotou o nome de Frei José Mariano da Conceição Veloso (1742-1811).

Frei Veloso veio a ser uma das mentes mais brilhantes do Brasil. Atuou como religioso, pregador, professor, botânico, químico, editor, autor e tradutor. Dirigiu a Tipografia do Arco do Cego, em Lisboa, onde publicou cerca de 80 livros.  Autor de duas obras expressivas como Flora Fluminenses e Fazendeiro do Brasil. Foi o primeiro brasileiro a defender as matas, praticamente sem estudos e impactadas pelos incêndios florestais.

Frei Veloso publicou em 1800, em Lisboa, o livreto Aviário Brasílico ou Galeria Ornitológica de Aves Indígenas do Brasil. Obra pioneira e didática a registrar um conjunto de aves nativas, estruturada a partir das pesquisas dos mais célebres ornitólogos da sua contemporaneidade. Apresenta as aves e a anatomia de algumas, exatamente para mostrar a diversidade das nossas espécies. Infelizmente, esta publicação basilar da nossa ornitologia é muito pouco conhecida pelos brasileiros.


                                         

Aviário Brasílico ou Galeria Ornitológica de Aves Indígenas do Brasil, 

Frei José Mariano da Conceição Veloso. Tipografia Arco do Cego, Lisboa, 1800.

 

 

Aviário Brasílico ou Galeria Ornitológica de Aves Indigenas do Brasil,

Frei José Mariano da Conceição Veloso. Tipografia Arco do Cego, Lisboa, 1800.

 

Ilustração de anatomia das aves. Aviário Brasílico ou Galeria Ornitológica de Aves Indígenas do Brasil, Frei José Mariano da Conceição Veloso. Tipografia Arco do Cego, Lisboa, 1800.

 

Aviário Brasílico ou Galeria Ornitológica de Aves Indígenas do Brasil,

Frei José Mariano da Conceição Veloso. Tipografia Arco do Cego, Lisboa, 1800.

 

Após a abertura dos portos, o Brasil recebeu diversos viajantes estrangeiros e expedições científicas, para registrar e estudar os variados aspectos da fauna e da flora. A compor as comitivas, vieram os desenhistas e pintores, um deles foi o francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848), integrante da expedição de Langsdorff. Debret atuou como um cronista do cotidiano daqui, a produzir belas imagens de muitas cenas triviais e outras menos comuns, como a aquarela Retorno dos negros de um Naturalista, com uma série de aves e outros animais coletados.


Retorno dos negros de um Naturalista (Nègres libres chasseurs rentrant em ville)

Jean-Baptiste Debret, aquarela, 1826.


O projeto Aves da Serra de São José foi realizado durante o período da pandemia da Covid-19 e seguiu todas as orientações sanitárias. Tudo nesta época foi complexo e difícil.

O Brasil já conta com excelentes ornitólogos e boas publicações sobre as aves. Não há como deixar de destacar os trabalhos de Eurico Santos e Johan Dalgas Frisch. Em 1963, o Ministério da Educação e Cultura publicou o livro Aves, boa contribuição para o tema. Mais recentemente, foram publicadas muitas obras sobre as aves e guias de campo. Pela beleza das publicações editadas, impecavelmente, destacam-se As Aves de Paraty – das montanhas ao mar, organizado por Guto Carvalho e Serra da Canastra – Refúgio das Aves do Cerrado, de Alessandro Abdala.


Caneleiro-verde (Pachyramphus viridis). Fotografia: Kassius Santos.

 

                

Alto do Serra de São José. Fotografia: Luiz Cruz.


Após anos consecutivos de registros, pesquisas sobre as comunidades de aves e o desenvolvimento do projeto Aves da Serra de São José, analisado, aprovado e executado em Santa Cruz de Minas, ocorrerá o encerramento do projeto com o lançamento do livro, com o mesmo título. A obra apresenta as cinco cidades que compõem as unidades de conservação ambiental da Serra de São José, os seus dois biomas – a Mata Atlântica e o Cerrado, os variados ambientes da serra e seu entorno direto, onde ocorrem as aves. O livro apresenta 160 aves, com informações específicas e peculiaridades, a morfologia geral, os tipos de bico, um glossário, a lista com os nomes científicos e populares. Ainda traz fotografias das oficinas de desenhos de aves, realizadas nas escolas de Santa Cruz de Minas, ministradas pelo professor Leonardo Barros Vieira.

 

Aves da Serra de São José – Editora Mandala Produção, 2025.

 

A Serra de São José tem proteção através das unidades de conservação ambiental, em especial o REVS – Refúgio Estadual de Vida Silvestre Libélulas da Serra de São José, exatamente para a proteção da fauna, que é exuberante. A comunidade de aves da Serra é um verdadeiro espetáculo, precisa de atenção e ações para a conservação dos seus ambientes. Há espécies endêmicas e em risco de extinção; por isso, todo cuidado é necessário à proteção dos habitats. O perímetro de amortecimento das áreas de proteção ambiental da Serra de São José também requer atenção e monitoramento, principalmente por ser corredor ecológico e de expressiva circulação da fauna. Além da comunidade das aves, há tantos outros grupos de espécies que precisam ser estudados e divulgados.

 

Tesoura-do-brejo (Gubernetes yetapa). Fotografia: Luiz Cruz.

 

Caracará (Caracara Plancus). Fotografia: Luiz Cruz.


A diversidade de espécies associada aos ambientes, mais os cursos d’água e a paisagem, nos permitem considerar a Serra de São José como um espetáculo da natureza e por isso já conta com o reconhecimento da Unesco, através do registro da Mata Atlântica como Patrimônio da Humanidade, na Fase 4, declarada em 3 de outubro de 1994. Os aspectos naturais associados à história geológica e aos sítios arqueológicos – principalmente os das atividades extrativistas do ouro, agregam valor e constituem elementos identitários das comunidades do seu entorno. Ao monumento natural, ainda se associa a “imaterialidade”, por ser local de piqueniques, de caminhadas, de passeios familiares, de manifestações religiosas – especialmente as de matriz afrobrasileira, também do ócio, da contemplação da paisagem e para a meditação.

Desde 1979, através de solicitação do Instituto Histórico e Geográfico de Tiradentes, encontra-se em processo de tombamento federal, sob o número: “01458.002213/2009-15 Processo de Tombamento 1012-T-79, referente à Serra de São José, Estado de Minas Gerais”. Breve o processo de tombamento federal completará 50 anos e tornar-se-á também objeto de interesse acadêmico, porque a campanha Serra de São José – Tombamento Federal Já!

promoveu inúmeras atividades ao longo de décadas, conseguiu a mobilização das comunidades, gerou relatórios e memórias.


Alto da Cachoeira do Bom Despacho, Serra de São José. Santa Cruz de Minas. Fotografia: Luiz Cruz.



Tipos de bicos de aves da Serra de São José. Desenho: Maria José Boaventura. 

 

O projeto Aves da Serra de São José contou com o apoio da Prefeitura Municipal de Santa Cruz de Minas / Conselho Municipal de Política Cultura e Patrimônio, das secretarias municipais de Cultura e Educação, além da Escola Estadual Amélia Passos. Para conclusão, encerramento e lançamento o livro foi contemplado com os recursos dos editais Lei Paulo Gustavo e Lei Aldir Blanc – de Santa Cruz de Minas.

O lançamento do livro Aves da Serra de São José será no dia 20 de fevereiro de 2025, às 19 h, na Câmara Municipal de Santa Cruz de Minas. Depois, será lançado durante o Festival de Fotografia Foto em Pauta, em Tiradentes – aguarde a programação oficial.

Luiz Antonio da Cruz

 Referências:

ABDALA, Alessandro. Serra da Canastra – Refúgio das Aves do Cerrado. Sacramento-MG: Editora Bertolucci, 2017.

Carta a El Rei D. Manuel, Dominus: São Paulo, 1963.

CARVALHO, Guto. (org.). As Aves de Paraty: das montanhas ao mar. São Paulo: TIJD Edições, 2017.

CRUZ, Luiz Antonio da. Recortes de Memória – Frei Veloso, botânico e editor. Tiradentes: IHGT, 2015.

CRUZ, Luiz Antonio da. Serra de São José – Educação Patrimonial. Tiradentes: Mandala Produção, 2016.

FRISCH, Johan Dalgas. Aves Brasileiras. São Paulo: Ecoltec Ecologia Técnica, 1981.

LOBO, Flávia da Silveira. Aves. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1963.

SANTOS, Cristina. Passarinhos da Mata Atlântica. Florianópolis, 2020.

SANTOS, Eurico. Pássaros do Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1979.

THEVET, André. (1502-1590).  A Cosmografia Universal de André Thevet, Cosmógrafo do Rei. Rio de Janeiro: Batel, Fundação Darcy Ribeiro, 2009.





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