Richard Rothe:

o alemão de coração tiradentino

 

Carlos Correia de Toledo e Melo viveu no Solar do Rua do Sol, a partir de 1777, depois de assumir como vigário da Paróquia de Santo Antônio, da Vila de São José. Sua residência era a mais requintada da vila, nela aconteceu a primeira reunião dos inconfidentes da Região do Rio das Mortes. Toledo foi o grande mobilizador dos fazendeiros, mineradores e comerciantes envolvidos na trama da Conjuração Mineira. Ele foi preso e através do Traslado do sequestro feito ao Vigário Carlos Correia de Toledo, dos Autos de Devassa, seus bens foram listados; por isso, temos ideia do requinte de sua casa, que contava até com escravizados musicistas para tocar durante os seus saraus e banquetes. A sala de jantar do Solar da Rua do Sol tem o teto em gamela, pintado, em cada face aparece uma cartela com uma fruta brasileira; ao fundo, num espaço bem retangular, com outro teto também pintado, onde deveria ficar os musicistas. Nos cantos, estão os armários de guardar comida, em treliças. Toledo foi um personagem espetacular, daqueles momentos da opressão portuguesa, ele foi destemido e vislumbrou um Brasil independente.


Richard Rothe. Fotografia: Arquivo Rogério Lazur.


Na mesma Rua do Sol, mas já com nova toponímia – Rua Padre Toledo, na casa de número 124, viveu um personagem também fascinante: Herr Richard Rothe. Ele nasceu em 9 de julho de 1909, em Kitliztreben, Silésia – ao norte da Alemanha, região que após a 2ª Guerra Mundial, foi devolvida à Polônia. Era filho de Hermann Rothe e Hewig Rothe. Faleceu na referida casa, em Tiradentes, em 5 de abril de 1987.

Richard Rothe era engenheiro químico e deixou a Alemanha quando percebeu o avanço do nazismo e a presença da violência. Saiu do Porto de Hamburgo com destino ao Brasil, em 1932. Desembarcou no Rio de Janeiro e logo seguiu para São Vicente (SP), e se estabeleceu em uma fazenda antiga, onde viviam muitas pessoas de origem afro, provavelmente ex-escravizados e seus descendentes. Em São Vicente, Rothe foi cuidado por uma dessas famílias de pretos, que vivia próximo ao seu alojamento na tal fazenda.

Criada em 1893, inicialmente como floricultura, mas logo a ampliar sua atuação, a Dierberger Óleos Essenciais S.A., Rothe foi trabalhar. Na década de 1940, a empresa era gerenciada por João Dierberger Júnior, que iniciou o cultivo em escala de outras variedades de plantas, como os cítricos, tais como bergamota, limão siciliano, laranja amarga, grapefruit, cidra e mandarina (pocã). Em meados dessa década, complementaram a iniciativa de investir na industrialização dos óleos essenciais, a agregar valor e adaptando-os para a indústria de aromas e fragrâncias. Já em Limeira (SP), a Fazenda Citra adquiriu reconhecimento nacional e internacional como estação experimental e distribuição de plantas por todo o Brasil.

Foi na Dierberger Óleos Essenciais S.A. que Rothe atuou como diretor e onde conheceu Luiz Antônio da Silva (1950-2022), quando iniciaram uma parceria em diversos empreendimentos e uma amizade duradoura. 

Após problemas de saúde e por recomendações médicas, Richard Rothe passou a procurar uma localidade mais tranquila para viver. Sua amiga e arquiteta modernista ítalo-brasileira Lina Bo Bardi (1914-1992) recomendou a cidade de Tiradentes, no interior de Minas Gerais. Ele se mudou em meados da década de 1970 e foi morar na casa da Rua Padre Toledo, que tinha sido totalmente reformada e adaptada por “Paulo Francês” e Luiza Pack.

Luiz Antônio da Silva, conhecido como “Luizão”, sua esposa, Ana Pereira Neves, e os dois primeiros filhos – Rogério e Beatriz também se mudaram para Tiradentes, onde chegaram a 23 de dezembro de 1980. O terceiro filho do casal nasceu em Tiradentes e recebeu o nome de “Richard”, em homenagem ao velho amigo. Os três sempre o chamaram carinhosamente de “Vovô Ricardo”.

 

Casa da Rua Padre Toledo, onde viveu Richard Rothe. Fotografia: Luiz Cruz. 

 

    Aspectos da Casa da Rua Padre Toledo, onde viveu Richard Rothe. Fotografia: Luiz Cruz.

 

Sediado em Tiradentes, Rothe viajava constantemente para São Paulo e para a Europa, gostava de acompanhar as temporadas de concertos internacionais. Na casa da Rua Padre Toledo, recebia os amigos e oferecia jantares memoráveis. Dentre os convidados mais frequentes estavam os amigos queridos Pietro Maria Bardi, Lia Bo Bardi e Roberto Burle Marx.

 

Richard Rothe e Luiz Antônio Silva, na Áustria e em Tiradentes. Fotografias: Arquivo Rogério Lazur. 

 

Richard adquiriu o sobrado da família Fonseca, na Rua Direita, e lá fez um jardim com uma coleção de palmeiras. No terreno já existiam velhas jabuticabeiras, mangueiras, abacateiros, pitangueiras e um poço natural, a atrair grande quantidade de aves.

 

Sobrado da família Fonseca, adquirido por Richard Rothe, onde construiu   jardim com uma coleção de palmeiras. Fotografia: Luiz Cruz.

 

Casa do Largo do Chafariz, adquirida por Richard Rothe, vizinha do Bosque da Mãe D’Água.  Fotografia: Luiz Cruz.

 

Outro imóvel que pertenceu a Rothe, foi a casa do Largo do Chafariz. Ele iniciou a obra de restauração da edificação, mas não a viu concluída, faleceu antes.

Pelas manhãs, Richard Rothe fazia caminhadas pela cidade, acompanhado por seu cão, o “Simba” – um Dogue alemão (Deutsch Dogge), era um cachorro gigantesco, preto, de pelo brilhante, mas dócil e muito bem adestrado. “Simba” tem origem em suaíli, uma língua banta com o maior número de falantes na África, onde significa “leão” – expressão masculina, geralmente associada à força, coragem e nobreza.

Em abril de 1978, convidaram Rothe para refletir e redigir sobre as questões pertinentes à flora e à fauna de sua cidade adotiva, Tiradentes. No documento manuscrito, com sua boa caligrafia e em português, a conter sete páginas, destacou a importância da Serra de São José e seu entorno, como expressiva área de mineração aurífera. Atividade que deixou inúmeros vestígios arqueológicos e alertou sobre a necessidade de sua proteção, principalmente do Bosque da Mãe D’Água, inclusive sugeriu a criação de uma unidade de proteção para a salvaguarda da sua biodiversidade.

 

  

Detalhe do documento redigido por Richard Rothe, datado de abril de 1978. Arquivo: Rogério Lazur.

 

Ele tinha compreensão das consequências das atividades extrativistas do ouro, no período colonial, e o impacto ambiental a perdurar:


                           

Detalhe do documento redigido por Richard Rothe, datado de abril de 1978. Arquivo: Rogério Lazur.

 

Sabemos que Tiradentes produziu em séculos passados quantidade apreciável de ouro. Notamos, aliás, por toda a parte os sinais coincidentes de sua lavra. Cavações profundas sem o cuidado de repor a vegetação, deixaram sítios completamente erodidos, com sulcos e boçorocas profundas, fortes sinais de erosão em progresso que mesmo para o pasto só servem com severas restrições de qualidade e limitação de cabeça por área.

 

Como foi proprietário da casa do Largo do Chafariz, conheceu muito bem o Bosque da Mãe D’Água, vizinho de seu imóvel, local das nascentes do Chafariz de São José (1749), onde se coletou pela primeira vez a libélula Heteragrion tiradentense (Bedê e Machado, 2006), identificada e logo registrada na lista de espécies em risco de extinção. Segundo o documento, suas observações estavam corretas; hoje, esta área é considerada remanescente de Mata Atlântica, a compor as unidades de conservação da serra, a APA São José e o REVS – Refúgio Estadual de Vida Silvestre Libélulas da Serra de São José, além de constituir um importante sítio arqueológico, o “pocinho”, local de corte e primeiros desbastes dos blocos rochosos, antes de serem transportados para os campos de obras.


                      

   Detalhe do documento redigido por Richard Rothe, datado de abril de 1978. Arquivo: Rogério Lazur.

 

 Tiradentes conta com uma pequena área que pode-se qualificar de rara, pois tem ainda árvores seculares e consequentemente uma vegetação relativamente rica e animais extintos em outras áreas. Trata-se do terreno (alguns hectares) situado ao redor e nos fundos da Mãe D’Água. É recomendável que esta área seja declarada reserva biológica do município com todas as restrições legais para reservas definitivas.

  

Rothe tinha uma visão protecionista e avançada para a época. Nos primeiros anos da década de 1980, realizamos uma exposição com as imagens do acervo da Paróquia de Santo Antônio, montada na Igreja de São João Evangelista. O conjunto era praticamente desconhecido da população local, porque ficava guardado no “cômodo da prataria”, com toda a segurança. As esculturas eram fabulosas, mas não havia suporte exposicional. Então, recorremos a Richard para nos apoiar e patrocinar os suportes em madeira. Para cada peça, um suporte específico. Ao apresentar o valor, ele ficou surpreso, o preço era elevado. Deixamos com ele a lista das imagens e as medidas dos suportes. Depois, ele mandou fazer e entregou os suportes, já pintados de preto. Graças ao apoio de Rothe conseguimos realizar a exposição e a peça principal foi a imagem de Sant’Ana, do retábulo lateral da Matriz de Tiradentes – obra de expressiva beleza escultórica e policromática. Depois, os suportes foram utilizados inúmeras vezes nas exposições montadas na cidade.


Sant’Ana, retábulo lateral da Matriz de Tiradentes, peça destaque da  exposição de esculturas, realizada na Igreja de São João Evangelista,  com o apoio de Richard Rothe. Fotografia: Luiz Cruz.

 

Herr Richard foi um autêntico bom-vivant, um anfitrião que recebia com generosidade, mas sobretudo com discrição. Manteve a decoração de sua casa com móveis originais do século XVIII e XIX e desprovida de ostentação. Ele foi também um incansável trabalhador. Nas horas vagas tecia tapetes, forros para cadeiras e poltronas. Ainda se encontra em uma das salas da casa da Rua Padre Toledo uma tapeçaria executada por ele e sua irmã, que curiosamente nunca esteve no Brasil. Yves Alves e Dona Dalma foram seus amigos, o casal fez questão de ter no salão principal da casa as cadeiras com os forros tecidos por Richard.


Tapeçaria, obra a quatro mãos, de Richard Rothe e sua irmã. Casa da Rua Padre Toledo. Fotografia: Luiz Cruz.


Salão da Casa da Rua Padre Toledo. Fotografia: Luiz Cruz.

 

CERTIFICADO DE HONRA NA THÜRINGER FOREST RUN 1931 do Ski-Zunft Erfurt, O Sr. Rothe (Erfurt Ski Club) conquistou o primeiro lugar na categoria de esportes de inverno. Seu tempo nos 4,3 km foi de 17:42 minutos. 26 de abril de 1931 GUILDA DE ESQUI ERFURI. Arquivo: Rogério Lazur.

 


Certificado do título de Comendador, concedido a Richard Rothe, em julho de 1973. Arquivo: Rogério Lazur.

 

Do jovem desportista da Alemanha, ao Senhor Richard que caminhava pelas ruas tricentenárias de Tiradentes, na companhia do seu “Simba”, havia uma vasta história e muitas vivências. Rothe foi uma personalidade admirada e muito querida, no Brasil e em sua terra natal. Teve reconhecimento e até recebeu títulos. Em Tiradentes, manteve-se discreto, mas sempre que fora demandado, agiu com cordialidade e presteza. O documento que redigiu em 1978, é uma preciosidade e ainda nos leva a refletir sobre a conservação e a proteção de Tiradentes, sua fauna e sua flora, muito além da área delimitada do Conjunto Arquitetônico e Urbanístico, tombado pelo Iphan, em 1938. Atualmente, na sua casa da Rua Padre Toledo funciona a Pousada Richard Rothe.

 

Luiz Antonio da Cruz

 

Gratidão ao apoio de Rogério Lazur, que nos enviou as fotografias, documentos, transcrições e incentivo para a redação deste ensaio. 

 

 

Tradução do Certificado – Rogério Lazur

 

 

Príncipe Geral

Philippe-Georges de Theodorou Fahme de Christopolis e de Capadócia

Duque de Tessalónica e de Heliópolis. Marquês de Panaghia-Nossa Senhora e de São Jorge. Conde do Epiro, da Macedónia e de Tebas da Trácia. Barão de Christianópolis e de Santa Helena. Grã-Cruz da Ordem do Santo Sepulcro, Grã-Cruz da Ordem de São Jorge. Regente da Casa Imperial Angelo-Comneno de Bizâncio e Presidente do seu Grande Conselho Áulico. Chanceler e Ministro Plenipotenciário da Ordem Imperial Soberana, Sacra e Militar da Cruz de Constantino o Grande. Comandante Superior da Guarda Nobre Grega Católica Melquita e Conselheiro da Comunidade em Roma. Ordinário e Membro da Academia Tiberina, Encarregado das suas Relações com o Estrangeiro.

Procuradoria Geral de Sua Beatitude EMI

Via Felice Cavallotti.

 

FILIPE

pela graça e divina misericórdia príncipe e Grande Arquimandrita do Patriarcado Greco-Melquita Católico de Antioquia e de todo o Oriente, de Alexandria e de Jerusalém

Em virtude dos poderes que nos foram conferidos, Vistas as Constituições, Do Nosso Motu Proprio,

 

NOMEAMOS E NOMEAMOS

Comendador da Ordem Imperial Soberana Sagrada e Militar da Cruz de Constantino o Grande, o Senhor Doutor RICHARD ROTHE, nascido a 9 de Julho de 1909, de nacionalidade brasileira, em Kittlitztreben, Silésia, filho do Sr. Hermann Rothe e da Sra. Hewig Rothe, com a seguinte citação:

Aliando as suas grandes qualidades de coração e espírito, uma indomável capacidade de visão e de trabalho, constitui um verdadeiro exemplo pelo seu ideal e pelo seu labor, merecendo assim a homenagem que lhe é conferida.

A entrega das insígnias e a investidura serão feitas durante uma cerimónia oficial a ser marcada.

O presente decreto entra em vigor imediatamente.

Feito, assinado e proclamado na Villa Notre Dame, sede da Ordem no Brasil, a 9 de Julho de 1973, a título de cordial homenagem de aniversário ao Comendador Rothe.

 

 

 

 

 



Comentários

  1. “Herr” Rothe. “Dr. Ricardo “. “Rothe”. Richard Rothe. Ou carinhosamente “Vovô Ricardo”. Dizem que um homem tem de fazer ao menos 3 coisas na vida para se sentir um ser humano realizado: plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro. Ele plantou inúmeras árvores, adotou-nos como sua família e escreveu memórias, cálculos químicos e receitas culinárias . Uma lenda tiradentina. Um homem de visão além de seu tempo. Não éramos consanguíneos, mas era como se fosse algo muito familiar: as trocas de receitas culinárias com minha mãe, a sutileza e o requinte de sua casa, sua ideia de globalização mesmo num mundo onde ainda não havia internet nem sequer celular (somente um telefone para chamadas interurbanas a cobrar que funcionava na casa do saudoso “Seu Ney” da Rua Direita)…Quando meu pai viajava a trabalho, era ele que muitas vezes nos levava às aulas de Inglês em São João Del Rei. Meu irmão mais novo recebeu seu nome em homenagem a ele, que “quase” veio a ser seu padrinho de batismo, não fosse a negativa do Pe. Nassif na época, pelo fato do alemão não ser católico (vá entender, não é mesmo?!)…Este senhor era multifacetado, um manancial de aprendizagem, poliglota, engenheiro químico (e porquê não dizer “alquimista”), comendador dono de vários saberes, tinha contato com várias personalidades importantes no Brasil e no exterior, empresário, ambientalista, um misto de patrão e patriarca de várias famílias (inclusive a minha)…Herr Rothe passou por este planeta e deixou sementes, muitas delas brotaram em terras férteis e geraram frutos…Sua memória será sempre preservada. Não fosse por ele, é bem provável que minha família não tivesse migrado do interior de São Paulo para esta terra maravilhosa no início dos anos de 1980…A ele, toda minha gratidão e um beijo.
    Gratidão ao professor Luiz Cruz por esta reportagem, pois elucidou a muitos que desconheciam a pessoa que ele era.

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    1. Rogério, obrigado por sua presença aqui e seu retorno. Richard Rothe foi uma personalidade ímpar na história contemporânea de Tiradentes, mas se manteve sempre discreto. Seu relato complementa a minha pesquisa e a enriquece sobremaneira; assim ele ganha maior dimensão de humanidade. Tiradentes foi privilegiada em ter pessoa com a magnitude de alma como a de Richard Rothe. Gratidão por seu apoio e atenção.

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