Aqui é Tiradentes indo para o ralo

 

    É estranho que, após o pranto

    vertido em rios sobre os mares,

    venha pousar-te no ombro

    o pássaro das ilhas, ó náufrago.

 

    É estranho que, depois das trevas

    semeadas por sobre as valas,

    teus sentidos se adelgacem

    diante das clareiras, ó cego.

 

    É estranho que, depois de morto,

    rompidos os esteios da alma

    e descaminhado o corpo,

    homem, tenhas reino mais alto.

 

    Henriqueta Lisboa, É estranho.

 

 

 

Conjunto Arquitetônico e Urbanístico de Tiradentes, tombado pelo Iphan, desde 1938, 

visto da Serra de São José. Fotografia: Luiz Cruz.


E tudo continua a mesma coisa... É Tiradentes sendo devastada sob os auspícios da Prefeitura e da Câmara Municipal. Os poderes constituídos só se lembram que existe um Plano Diretor Participativo quando precisam assegurar interesses INDIVIDUAIS e ESCUSOS. Em 2023, a Prefeitura encaminhou para a Câmara uma alteração do Plano Diretor para uma expansão urbana, curiosamente em área para a inserção de mais um condomínio, que já se encontrava protocolado no Iphan, para a análise e a aprovação. Estivemos na Câmara e cobramos responsabilidade para com o Plano Diretor e principalmente com as alterações para a expansão urbana.

Em 2024 e 2025, apresentamos ao vereadores, aos presentes no plenário da Câmara e a todos que acompanham as transmissões da casa legislativa a “Recomendação Nº 1 - PRM/SJDR/MF, de 17 de janeiro de 2019”, a sobrestar todo e qualquer iniciativa para análise e aprovação de parcelamento do solo, loteamento ou condomínio, até que a Prefeitura “adote todas as medidas para a contratação de profissionais habilitados para a aprovação, acompanhamento  fiscalização de projetos de parcelamento do solo e edificações, inclusive relativos ao patrimônio-cultural e ambiental”. O não cumprimento das “Recomendações” pode implicar adoção das providências administrativas e judiciais, “pela prática de improbidade administrativa”, “crimes de responsabilidade” e de “prevaricação”. A atual Administração e a Câmara Municipal não consideraram as “Recomendações” do Ministério Público Federal.



Trechos da “Recomendação Nº 1, do Ministério Público Federal, encaminhada à Prefeitura e 

à Câmara Municipal de Tiradentes, em 2019. 

 

Na reunião ocorrida no dia 4 de agosto de 2025, a Prefeitura encaminhou o “PROJETO DE LEI COMPLEMENTAR MUNICIPAL N.º 020, DE 30 DE JUNHO DE 2025. Modifica a Zona Urbana e o Zoneamento do Município de Tiradentes e dá outras providências”, exatamente como ocorrido em 2023. A Prefeitura subsidiou tal com uma “comissão” fajuta. O presidente da Câmara colocou o projeto em votação e foi aprovado. Dos nove edis, apenas a vereadora Suelen Cruz (PT) compreendeu as propostas do tal projeto, posicionou-se e votou contra. Os demais vereadores tiveram os lábios adocicados pela tal “comissão” e caíram como patinhos feios na arapuca armada pela Administração Municipal.

Tudo se repete. Mudam as administrações, mas o modus operandi de fazer política é sempre o mesmo. Os interesses individuais, particulares e até escusos acabaram priorizados em detrimento dos interesses da comunidade. Afinal de contas, Tiradentes precisa mais de expansão para promover a ESPECULAÇÃO IMOBILÁRIA?

A aprovação dessa “Lei Complementar Nº 020, de 2025” caiu como um balde de gelo jogado sobre a cabeça do povo de Tiradentes. Significa que na Câmara Municipal só poderemos contar com o apoio da vereadora Suelen Cruz (PT), os demais ficaram com a credibilidade abalada. Se acreditaram nos subsídios da tal “comissão” capenga, devem acreditar que existe a “Branca de Neve” e também o “Papai Noel”, devem até colocar os sapatinhos na porta, na Noite de Natal, para ganhar presentinhos, nem que seja um espelhinho.

 

Texto, Carta

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É necessário compreender a espacialidade e as especificidades do nosso município; na Candonga, a área com vegetação subtraída e aterrada, encontra-se entre as unidades de proteção da Serra de São José – APA e REVS, o Rio das Mortes e a linha férrea da EFOM – que tem proteção federal através do tombamento do “Complexo Ferroviário de São João del-Rei / Estação Ferroviária (SJDR), Museu Ferroviário (SJDR) e Estação Ferroviária (Tiradentes)” – Processo: 1.185-T-85, desde 1989. Ou seja, trata-se da Várzea do Rio das Mortes, área brejosa, com riachos e muitas lagoas, algumas remanescentes das atividades auríferas dos séculos XVIII e XIX. É uma área alagável com as enchentes do Rio das Mortes. Região que deveria ser contemplada com todos os instrumentos protetivos, principalmente por funcionar como corredor ecológico, por ser área de circulação de inúmeras espécies da fauna da Serra de São José, por ser local de alimentação, descanso e reprodução desses indivíduos. Ainda, funciona como berçário para a reprodução das libélulas, insetos relevantes indicadores ambientais e que por sua importância, foi criado o REVS – Refúgio Estadual de Vida Silvestre Libélulas da Serra de São José (Decreto Nº 43.908, de 5 de novembro de 2004). Em termos ecológicos e ao considerar as diretrizes do SNUC-Sistema de Unidades de Conservação (Lei Nº 9.985, de 18 de julho de 2000), a referida área deveria ser considerada “área de amortecimento” das unidades de proteção da Serra de São José, principalmente para a manutenção da Mata Atlântica que necessita de área mais abrangente para sua própria sobrevivência. Reduzir sua área de amortecimento e ignorar os corredores ecológicos, coloca o bioma em alto risco de sobrevivência e consequentemente de sua fauna. 

 

 

SNUC-Sistema de Unidades de Conservação

(Lei Nº 9.985, de 18 de julho de 2000)

 


Art. 13. O Refúgio de Vida Silvestre tem como objetivo proteger ambientes naturais onde se asseguram condições para a existência ou reprodução de espécies ou comunidades da flora e da fauna residente ou migratória.


XIX - corredores ecológicos: porções de ecossistemas naturais ou seminaturais, ligando unidades de conservação, que possibilitam entre elas o fluxo de genes e o movimento da biota, facilitando a dispersão de espécies e a recolonização de áreas degradadas, bem como a manutenção de populações que demandam para sua sobrevivência áreas com extensão maior do que aquela das unidades individuais.

 

 

 

Candonga, aterro de área da Várzea do Rio das Mortes. Tiradentes, 2025.

Fotografias: Luiz Cruz.


Libélula que ocorre em Tiradentes. Fotografia: Luiz Cruz.

 

Proteger Tiradentes vai muito além do Conjunto Arquitetônico e Urbanístico setecentista, tombado desde 1938, Processo 66-T-38, que é composto por meia dúzia de ruas, meia dúzia de becos e meia dúzia de largos. Trata-se de um núcleo diminuto; portando, absolutamente frágil, merecedor de toda atenção e com a devida aplicação dos instrumentos de proteção, o Decreto-Lei Nº 25, de 1937, o Plano Diretor, a Lei de Programação Visual (Lei Nº 2.425, de 22 de junho de 2009), a Lei de Poluição Sonora (Lei Nº 2.450, de 13 de outubro de 2009) e o conjunto legislativo pertinente às questões ambientais, de âmbito estadual e federal.

A degradação de Tiradentes é galopante, é só chegar, parar no Largo das Forras, e verificar o quanto está poluída, com uso inadequado do espaço urbano, com as calçadas ocupadas por restaurantes, sem nenhum respeito ao pedestre. Mas, se fosse um nativo proceder tal ocupação, seria fiscalizado, multado, processado e receberia todas as sanções possíveis e imagináveis. Aqui, a aplicação dos instrumentos protetivos é relativa, depende do “nome”, “sobrenome”, “CPF” e dos reflexos das contas bancárias.

Lamentavelmente, assistimos uma descaracterização avassaladora de Tiradentes, com as ocupações desordenadas; a avançar, subtrair a vegetação nativa, soterrar córregos e lagoas, a ocupar todo o entorno direto do núcleo protegido. Ainda, com os condomínios fechados a acentuar cada vez mais o processo de gentrificação. Tudo promovido pela tal especulação imobiliária, que é o câncer de Tiradentes. Cabe aqui lembrar Otto Lara Resende, com sua frase famosa “O mineiro só é solidário no câncer”, que se popularizou ao ser introduzida por Nelson Rodrigues em sua obra Bonitinha, Mas Ordinária, – é exatamente o que o poder público local transforma nossa cidade, em local “bonitinho para o turismo” e “ordinário para os moradores”.

Em pleno ano de 2025, quando se discutem seriamente as questões de ordem climática planetária, Tiradentes se confirma na contramão da História. A Prefeitura manda para a Câmara um projeto errado e equivocado, em área de interesse pessoal / particular e de agentes vinculados diretamente à Administração Pública; chegar à casa legislativa, sem passar por análise profunda e imediatamente obter a aprovação com oito votos favoráveis e apenas o voto da vereadora Suelen Cruz (PT) contra, é uma vergonha, é uma imoralidade.

Tudo isso se contrasta com a realidade local. Muitos tiradentinos estão se mudando para as cidades do entorno porque não conseguem pagar aluguel. Há carência enorme de moradias populares. Precisamos de projetos para atender às demandas do povo. Moradia é um dos mais graves problemas da cidade. Precisamos de “Minha Casa, Minha Vida – Habitação Popular”, do Governo Federal. Mas para isso deve haver planejamento, evitar ocupações irregulares como ocorre aqui, principalmente no Elvas e na Candonga. Esses locais refletem a completa ausência das autoridades, planejamento, orientação e fiscalização. Por isso, acabamos mais impactados ao constatar que as autoridades acabam se mobilizando, mas em torno de interesses individuais.

A região da Candonga está sob fogo cerrado, primeiramente com o condomínio fechado “Tiradentes Ville”, exatamente na linha limite das unidades de conservação da Serra de São José e mais a área em questão, que provavelmente será para mais loteamento. A Estrada Velha que separa a serra e estes investimentos é um corredor ambiental. Infelizmente, inúmeros animais são atropelados ao cruzarem a estrada. Nossas autoridades se esquecem que para expansão urbana é preciso contemplar a mobilidade, esgoto, água potável, lixo, segurança. É necessário também contemplar a flora e a fauna. Mas, importante mesmo, para “eles” é o agora. Passar a boiada e resolver os problemas individuais, mesmo que sejam escusos.

 

 

Macaco atropelado na Estrada Velha. Fotografia: Paulo H., acervo Luiz Cruz.


       

 Uma imagem contendo ao ar livre, edifício, pedra, marrom

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Animais silvestres atropelados ao cruzarem a Estrada Velha, que separa as

unidades de proteção ambiental da Serra de São José e a Várzea do Rio das Mortes. 

Fotografias: Luiz Cruz.

 

É triste, muito triste, porque com o atual quadro político local, será difícil Tiradentes colocar os pés do século XXI. Ou seja, continuaremos com a politicagem dos primeiros anos da casa legislativa, que durante certo tempo também foi executiva. E assim, nossa cidade figura dentre as mais antigas de Minas Gerais, que corre maior risco de descaracterização. Parodiando Leônia, uma das cidades imaginárias descritas por Ítalo Calvino, em As cidades Invisíveis, Leônia se renova constantemente pelo autoconsumo e sua produção de resíduos; enquanto Tiradentes se transforma cotidianamente pelo impacto da especulação imobiliária e os interesses individuais.

No campo da espiritualidade, só nos resta agarrar aos pés da imagem do Pai Eterno, invocar constantemente a proteção do Divino Espírito Santo e nos conectar a todos os Orixás para que tenham compaixão do nosso município. No campo do homem, só nos restou a última instância, o MPF-Ministério Público Federal, para onde deve ser encaminhada denúncia sobre o tal projeto: “PROJETO DE LEI COMPLEMENTAR MUNICIPAL N.º 020, DE 30 DE JUNHO DE 2025”. Ideal mesmo, seria o MPF e a Polícia Federal fazerem uma operação pente fino em Tiradentes e executar profunda investigação em todos os investimentos imobiliários daqui – investigar o câncer de Tiradentes – a especulação imobiliária. Cada investimento merece uma boa investigação, afinal, de onde saem tantos $$$ que desabam sobre nossa amada Tiradentes, que chegam aqui só para devastar o Meio Ambiente e promover a gentrificação?

 

Luiz Antonio da Cruz

Professor, é doutor e mestre em

Arquitetura e Urbanismo pela UFMG,

 especialista em Administração e Manejo de Unidades de Conservação pela UEMG/U.S.Fish

 

Comentários

  1. Que irresponsabilidade, tristeza!

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    1. Obrigado pelo registro. Realmente é uma tristeza o que ocorre com Tiradentes, em todos os sentidos. Virou a cidade espetáculo, a cidade dos eventos e da degradação total.

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  2. Isso é uma irresponsabilidade. Precisamos barrar esse absurdo.

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    1. Obrigado pela presença aqui. É mesmo uma irresponsabilidade, só usam o Plano Diretor para o uso indevido, depois ele fica trancado na gaveta, até a nova demanda de interesse pessoal. Pagamos caro pela estrutura administrativa para obter resultado tão pífio e irresponsável. Abraço

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  3. Que coisa mais triste!!

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    1. Obrigado pela presença aqui. É triste e é doloroso. Falta compreensão da relevância de Tiradentes - do seu patrimônio cultural, do patrimônio ambiental e do patrimônio humano. As individualidades sobressaem e ofuscam todas as preciosidades da nossa amada Tiradentes.

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  4. Grande decepção com esta casa legislativa, que privilegia o interesse de empreendimentos que não interessam ao povo de Tiradentes, que causam impacto ambiental e aumentam a especulação imobiliária, o que afasta, cada vez mais, o Tiradentuno de sua cidade. É lamentável que apenas a vereadora Suelen tenha pensado no interesse do povo.

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    1. Muito obrigado pela presença aqui e pelo comentário. Cada alteração do Plano Diretor ocorre para privilegiar interesses privados e até escusos. A especulação imobiliária em Tiradentes precisa ser contida e não fomentada pelo poder público, em especial a Prefeitura e a Câmara. Lindo mesmo é ver esses seres em campanha política; depois de aboletados no poder, tornam-se iguais e dão um bela banana para o POVO. Cada vez mais gentrificada, a cidade precisa é de projetos sociais e de muitos investimentos para a moradia popular. Abaixo os condomínios e esses loteamentos inadequados para iludir pessoas desprovidas de senso da realidade local.

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