Dorothy Lenner: Arte & Vida

 

Participamos o falecimento da atriz e dançarina DOROTHY LENNER, ocorrido em São Paulo, em 21 de dezembro de 2025. Dorothy foi nossa amiga muito querida e muito admirada no Brasil e no exterior. Ela foi uma grande tiradentina de coração e amou essa terrinha como ninguém.

  

 

 

O texto a seguir foi redigido em 2021, a homenageá-la, quando completava 89 primaveras. Travamos uma longa conversa, ela acompanhou a elaboração do texto, fez sugestões e correções. Foi publicado no nosso face-book, agora registrado aqui nessas páginas, para que os seus admiradores possam rememorar essa cidadã tão especial e tão querida.

 


   

Dorothy no Largo das Forras. Foto: Luiz Cruz. 

 

TIRADENTES – BUCAREST - (Parte I). Hoje, 2 de abril de 2021, Sexta-Feira da Paixão, nossa querida DOROTHY LENNER celebra sua 89ª primavera. Quem é essa cidadã que escolheu Tiradentes para viver? A menina nascida na Romênia e batizada Dorothy Hecht é o resultado do encontro de Joseph Hecht e Beatrice Mathilde Hecht, de origens tão diversas, mas que tinham em comum a ARTE.  Desde os de três anos, gostava de dançar sobre as mesas da casa. Enrolava-se em tolhas, dançava e esperava por aplausos; ou seja, já era uma estrelinha com consciência e com essa tenra idade foi matriculada em uma escola de dança em Budapest, sendo levada pela mãe. Sua avó e tios foram cantores de ópera e, ainda muito pequena, Dorotinha já frequentava teatros para prestigiá-los em apresentações operísticas em Bucarest e Budapest. Um fato histórico ocorrido em 1939, mudou sua vida para sempre; após a invasão de Hitler na Polônia, a família se refugiou em Buenos Aires. Lá estudou no internato do Colégio de Nossa Senhora do Carmo, onde conheceu uma freira, a mais idosa delas; passou a frequentar sua cela e com ela aprendeu muito sobre “religiosidade”. Durante certo tempo, seu sonho era ser monja. Nem tudo idealizado ou sonhado deu certo. Sua mãe se converteu ao judaísmo e ela teve que sair do colégio das freiras. O tema religião esteve proibido na família; então, para rezar, fugia e ia para as igrejas, passava tempos a sós e a conversar com Deus.

 

Mulher sentada com celular na mão

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Dorothy no CCYA, Tiradentes. Foto: Luiz Cruz.

 

Ao se afastar dos contatos do colégio, vivenciou momentos de profunda amargura; mas que aos poucos foram superados, quando passou a frequentar o cinema e os espetáculos teatrais – dança e música, que ocorriam nos inúmeros teatros amadores portenhos. Daí iniciou seus estudos de Dança Clássica, Dança Flamenga e de Esgrima. Na capital da Argentina teve grandes professores de dança. Ingressou na Faculdade de Farmácia e Bioquímica, onde estudou por dois anos e abandonou. Queria mesmo ir para os Estados Unidos cursar uma faculdade de Dança. Em 1953, mudou-se para o Brasil e conheceu Nelson Leirner, artista visual, de origem judia, que vivia e estudava nos Estados Unidos. O casal teve três filhas Vivian (1954), Alexa (1961) e Nina (1963) – hoje tem netos Ramandar, Martina e Benjamin. Ela sempre se refere às filhas como um presente de Deus, são a razão de sua vida, o seu tesouro. 

   

Dorothy Lenner. Fotografias: acervo Dorothy.

  

Homem olhando para o lado

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Dorothy, exposição “Memória”. Foto: Luiz Cruz. 

 

Dorothy sempre foi católica, muito católica! Tem como protetores os arcanjos Gabriel, Miguel, Rafael, Uriel e Metatron. Devota das santas mártires Filomena, Policena, ainda dos populares Santo Antônio de Pádua e São Francisco de Assis. Fé e fortes devoções sempre fizeram parte de sua história.

Em 1955, encontrou um anúncio para teste de admissão, com o professor Alfredo Mesquita e outros. Fez os exames e foi reprovada, pois seu português era sobrecarregado de sotaques. Mesmo assim, frequentou as aulas. Até que fez novamente os exames e obteve sucesso. Cursou, então, a Escola de Artes Dramáticas (USP) – período em que foi aluna de professores como Sábato Antônio Magaldi, Décio de Almeida Prado, Maria José de Carvalho e Leila Couri. Logo, entrou para o TBC – Teatro Brasileiro de Comédia (inaugurado em 1948, por iniciativa de Franco Zampari), onde teve muitas experiências com o teatro, a dança e a música.

Na Escola de Artes Dramáticas (USP), ministrou a disciplina de “Técnicas do ator”, no período de 1966 a 1972. Em 1967, recebeu uma bolsa do British Council para representar o Brasil no curso do Stage Craft and Acting, no British Drama League, em Londres, quando cursou “Period Movement” – danças antigas europeias, com Belinda Query (1967). Em seguida ministrou diversos workshops e masterworks sobre a psicoterapia junguiana, com Sula Guerschan.


Dorothy, espetáculo na Capela do Evangelista. Foto: Luiz Cruz.  


Dorothy, espetáculo na Capela do Evangelista. Foto: Luiz Cruz. 

 

Ao retornar ao Brasil, voltou a lecionou na USP, além de atuar no cinema, na TV e no teatro, sob a direção de Alfredo Mesquita, Alberto D’Aversa, Antunes Filho, Clifford Williams, Eugênio Kusnet e outros. Entre 1977 a 2001, trabalhou na Companhia Tamanduá de Dança-Teatro, dirigida por Takao Kusuno (1945-2001). Descobriu o Butoh, em 1977, conhecendo essa arte através de Kusuno, que por certo período achou difícil e complexa para uma artista interdisciplinar. Viajou para diversas localidades do interior paulista e depois para outras regiões brasileiras, apresentando espetáculos. Num certo período, trabalhou com Pietro Maria Bardi, no MASP, na organização e montagem de exposições, quando foi curadora de uma grande exposição de arte sobre a Romênia, nesse museu. 

Ainda no MASP, durante anos, participou da Feira de Antiguidades, aos domingos e aos sábados na Feira da Rua Benedito Calixto. Antiguidades em geral, sempre fez parte de sua jornada. 

Por quinze anos, a dançarina, atriz e performer Dorothy Lenner se refugiou na Serra Negra-SP, onde dedicou seu tempo aos trabalhos junto à comunidade. Até que um dia recebeu um telefonema para trabalhar em espetáculo de Butoh, quando conheceu Kazuo Ohno (1906-2010), o maior e mais expressivo dançarino dessa arte. Teve curso com o mestre no Brasil e foi recebida por ele no Japão, em 2003; realizou apresentações em Tóquio, Kioto, depois na Alemanha, Cuba e também em várias capitais brasileiras. Um dos filmes que participou foi Gaijin – Caminhos da Liberdade, dirigido por Tizuka Yamasaki, em 1980. O elenco de peso teve ainda Antônio Fagundes, Carlos Augusto Strazzer, Gianfrancesco Guarnieri, Jiro Kawasaki, José Dumont, Kyoko Tsukamoto, Louise Cardoso, Sady Cabral e Yuriko Oguri. Na trama, Dorothy e Gianfrancesco formavam um casal, que tinha uma filha – interpretada por Louise Cardoso. É necessário lembrar que Tizuka Yamasaki veio de experiências com Nelson Pereira dos Santos, um dos expoentes do Cinema Novo. Gaijin fez sucesso, tornou-se um dos ícones do cinema brasileiro. Foi exatamente nesse ano, 1980, que Dorothy esteve em Tiradentes-MG pela primeira vez. No adro da Matriz de Santo Antônio, ao contemplar a vasta paisagem da Serra de São José, começou a chorar, pelo encantamento, pela emoção, pela atração que sentiu pelo lugar – aí, prometeu a si mesma mudar e viver definitivamente na cidade. A partir de 1994, viajou com os espetáculos “O Olho do Tamanduá” e “Quimera: O Anjo Vai Voando”, dirigidos por Takao Kusuno. Certo domingo de 2004, encontrou com os amigos Pepe de Córdoba e Renato Diniz na Feira de Antiguidades do MASP, quando disseram a ela que havia uma casa à venda em Tiradentes, que talvez ela pudesse se interessar. Na quarta-feira da semana seguinte, Dorothy viajou e comprou a casa da Rua Belica, mesmo sem ter dinheiro. Para pagar a compra, vendeu a propriedade que tinha em Buenos Aires. Já em Tiradentes, começou a construir o Centro Cultural Tamanduá e para concluir a obra, vendeu o sítio da Serra Negra. A partir da cidade mineira, viajou para diversas localidades, levando espetáculos teatrais, como “Samaúma – O espírito sagrado da floresta”, dirigido Eden Silva Peretta, “Tabi” de Emilie Sugai, “Wabi Sabi” – idealizado por Hideki Matsuka e Ricardo Muniz Fernandes e outros, também para ministrar cursos.

Por muito tempo, manteve uma sala com exposição de objetos antigos, em um dos espaços do Instituto Cultural Largo do Ó. Em 2014, vendeu sua casa da Rua Belica e comprou a atual, onde vive, no Largo do Ó, no núcleo antigo de Tiradentes. 

 

Homem com chapéu rosa

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Dorothy, Guarda do Congado de São Benedito. Tiradentes. Foto: Luiz Cruz.

 

     Mulher com vestido de noiva

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    Dorothy, espetáculo no CCYA. Fotos: Luiz Cruz.

 

Dorothy no CCYA. Foto: Luiz Cruz.

 

Sempre viajando, sempre pesquisando, sempre ensinando e aprendendo. Dorothy Lenner é de uma jovialidade inabalável. Numa dessas viagens, rumo à Piracicaba-SP, onde daria um curso, sofreu grave acidente automobilístico. Achou que havia morrido e não retornaria mais. Teve fraturas nos joelhos, nos pulsos, perfurações e outros ferimentos. Passou por cirurgias e intenso tratamento fisioterápico.

 

Pessoas andando na calçada

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Dorothy no Largo das Forras, em manifestação pela Democracia. Foto: Luiz Cruz.


Aos poucos foi se recuperando e retornando à sua rotina das artes. Foi homenageada no Festival Artes Vertentes, no Festival Tiradentes em Cena e no 51º Festival de Inverno da UFMG. Recebeu uma das mais belas exposições já montadas em Tiradentes, “Memórias”, sob a curadoria de Hideki Matsuka. Já apresentou espetáculos no palco e jardim do Centro Cultural Yves Alves, nas capelas de São Francisco de Paula e São João Evangelista, também no jardim do Museu da Liturgia.

 

Grupo de pessoas posando para foto na grama

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Dorothy em espetáculo no jardim do Museu da Liturgia. Foto: Luiz Cruz. 

 

Homem e mulher em pé posando para foto

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Dorothy com Aline e Mencarelli, jardim do Museu da Liturgia. Foto: Luiz Cruz.


Homem e mulher posando para foto

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Dorothy no Carnaval. Fotos: acervo ICBO. 

 

Mulher com chapéu de chuva aberto

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Dorothy no Carnaval. Foto: acervo ICBO.

 

Homem sentado na cama

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Dorothy no Carnaval. Foto: acervo ICBO. 

 

Dorothy Lenner caminhava pelas ruas de Tiradentes, apoiada em seus dois cajados, circulava por todos os lados, exercitando e recuperando os movimentos do seu corpo para expressar os movimentos precisos do Butoh. Os menos informados não tinham a menor ideia de quem se tratava, de que essa figura é uma das maiores e mais completas artistas que o Brasil já produziu. Ela é a nossa estrela, a maior e a mais brilhante. É nossa e é do mundo. É a nossa poliglota, que domina sete línguas, além de se comunicar com seu próprio corpo.

 

             Homem em pé segurando mala

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Dorothy e seus cajados. Fotos: Luiz Cruz.


Homem de barba e cabelos longos

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Dorothy no Largo Frida Kahlo. Fotos: Luiz Cruz.

 

Encontrar com Dorothy e olhar em seus olhos, trocar um dedo de prosa com ela é sempre um prazer, uma honra. Todos nós, com nossos sonhos e projetos, fomos atropelados pela epidemia de Covid-19. Dorothy se isolou e está a se cuidar, segue rigorosamente os protocolos de segurança. Já tomou a primeira dose da vacina e aguarda a segunda, para ficar totalmente imunizada. Apesar do isolamento, ela lá na casa do Largo do Ó e nós aqui em nossa casa, trocamos mensagens diariamente. 

 

Homem ao lado de cachorro

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Dorothy no CCYA. Foto: Luiz Cruz.


Centro Cultural Tamanduá, Tiradentes. Foto: Luiz Cruz. 

 

  Homem em pé em frente a água

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Dorothy, durante da pândemia de Covid-19. Fotos: Luiz Cruz.

 

Para a Dorothy enviamos fotografias das cachoeiras, trilhas, matas, flores, pedras e tantos outros aspectos da Serra de São José, que tanto aprecia. Ela que é tão tiradentina, que é de coração, corpo e alma – figura presente em todos os acontecimentos que envolvem as artes visuais, cinema, teatro, dança, literatura, carnaval, cultura em geral e as celebrações – ela compunha a “Guarda Feminina” do Congado de São Benedito, que saía pelas ruas de pedra, com os cantos e ao som dos tambores a homenagear Nossa Senhora do Rosário. 

 

    

Dorothy e seus amigos. Fotos: Luiz Cruz.

 

Pessoas sentadas posando para foto

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Dorothy e seus amigos. Fotos: Luiz Cruz.

 

          Grupo de pessoas em pé posando para foto

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Dorothy e seus amigos. Fotos: Luiz Cruz.

 

 
                                               Dorothy e seus amigos. Fotos: Luiz Cruz.

 

Pessoas em pé sorrindo

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Dorothy e seus amigos. Fotos: Luiz Cruz.

 

Pessoas posando para foto

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Dorothy e seus amigos. Fotos: Luiz Cruz.

 

Presença também em nossas manifestações contra o desgoverno e a desconstrução do Brasil. A amiga já nos revelou que não quer ser sepultada, será cremada. Suas cinzas serão jogadas do alto da Serra de São José, naquela paisagem que contemplou em 1980 e que a cativou para sempre. A menina que nasceu em terras tão longínquas, numa SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO, construiu uma VIDA tão sensível – tão repleta de ARTE, FÉ e de SUPERAÇÕES; hoje, aqui em Tiradentes, completa 89 primaveras e ainda continua uma menina. Parabéns!

 Luiz Cruz, Regina, Olívia e Pedro.  

Comentários

  1. Que belo texto. Pena. Estive tantas vezes em Tiradentes e não tive o prazer de conhece Doroty.

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    1. Obrigado pelo presença e pelo registro. Dorothy foi uma pessoa formidável, grande amiga de tantos amigos. Abraço

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