JAIR AFONSO INÁCIO – AO MESTRE COM
MUITA GRATIDÃO
Professor Jair Inácio com
seus alunos, turma de 1977. Largo do Rosário,Ouro Preto. O primeiro da
direita é Luiz Cruz. Acervo do autor.
Nascido a 2 de agosto de 1932, agora completaria sua 90ª
primavera. O ouropretano Jair Afonso Inácio, mais conhecido como Jair Inácio,
foi figura ímpar na galeria de personagens do século XX e motivo de orgulho,
especialmente para Minas Gerais; mesmo tendo partido precocemente, logo ao
completar sua quinta década de vida.
No distrito de Antônio Pereira, viveu até perder o pai,
Gabriel de Paula Inácio, depois se instalou em Ouro Preto, abandonou os estudos
para trabalhar e ajudar na criação da família, conduzida pela mãe, Dona Antônia
Margarida de Souza.
Homem de imensurável simplicidade, mas de lapidada percepção
e sensibilidade; por questões econômicas, não pode prosseguir nos estudos
formais. Porém, logo percebeu suas habilidades para a arte do desenho e da pintura.
Na adolescência descobriu também o gosto para o estudo de línguas estrangeiras
e se tornou um poliglota. Nesse sentido ao rememorar a história de Jair Inácio,
vem à mente outro mineiro, João Guimarães Rosa, que cedo foi despertado para o
estudo de línguas e a russa aprendeu sozinho. Rapidamente, Jair Inácio de
sapateiro virou restaurador, o domínio de línguas e suas habilidades abriram-lhe
oportunidades.
Jair Inácio foi um dos pioneiros da arte da restauração no
Brasil e esse aspecto de sua vida é o mais conhecido. Inclusive já foi tema de
trabalho acadêmico. Jair se destacou ainda como exímio professor.
A FAOP – Fundação de Arte de Ouro Preto foi idealizada por alguns
intelectuais, dentre eles Murilo Rubião, Domitila do Amaral, Vinícius de Morais
e Affonso Ávila – e sua instituição ocorrera a 11 de fevereiro de 1969. A FAOP
sediou o primeiro Curso de Restauração Artística em Minas Gerais e sob a
coordenação do Professor Jair Inácio.
Em 1977, esse cronista que lhes dirige saiu de Tiradentes, foi
morar, estudar e fazer os cursos de arte da FAOP, onde atuavam professores expressivos
como Amilcar de Castro, Carlos Wolney, Ana Amélia, Moacyr Laterza, Jair Inácio
e tantos outros.
Nossas aulas com o Professor Jair Inácio foram memoráveis!
Aulas teóricas e práticas em sala e aulas de campo. Para Jair ensinar, ele
precisava mostrar, fazer com que os alunos tivessem muito além da informação –
a compreensão. Não bastava apresentar os conceitos sobre o que o Barroco, o
Rococó ou Arte. Ele conduzia a turma para conhecer in loco toda riqueza
de Ouro Preto e de seu entorno. Em sua companhia, tivemos o prazer e a honra de
apreciar as matrizes, capelas, passos, museus, os principais exemplares da
arquitetura civil e as edificações dos distritos ouropretanos. Circulamos pelo
entorno direto da cidade, passamos pelas ruínas do Morro da Queimada e chegamos
até a Fazenda do Manso. Através de suas aulas, tivemos subsídios para
compreender o que é uma espacialidade barroca – tema que posteriormente se
tornaram pesquisas e obras dos professores Rodrigo Bastos (UFSC) e Rodrigo Espinha
Baeta (UFBA). Nesse sentido, Ouro Preto
com sua implantação geográfica, urbanística e arquitetônica continua linda e um
dos melhores sítios para nos facilitar o entendimento do modus operandis
para se instalar, edificar e viver no período colonial brasileiro.
Para nossas aulas de campo, a FAOP não dispunha de
transporte. Quando as atividades fora de sala eram agendadas, sempre surgia a
pergunta: – mas como chegaremos lá? Logo, o Professor respondia: – só chegar e
embarcar. Fato curioso presumir que Jair Inácio custeava o transporte da turma
com recursos próprios.
Na sala de aula, o Professor Jair Inácio, com sua fala mansa,
mas cheia de determinação, nos apresentava a introdução teórica da arte de
restaurar. Para se colocar as mãos em uma peça, escultura ou pintura, dizia que
era fundamental reconhecer os seus elementos constitutivos. Por exemplo, mostrava uma imagem de Nossa
Senhora do Rosário e ia a nos apresentar infinidades de detalhes e informações
para o reconhecimento estilístico, iconográfico, período e possível autoria. O
Professor Jair nos conduzia a trilhas a serem percorridas para a construção da
nossa aprendizagem. Aos nos colocar à frente de uma escultura, ficávamos diante
um universo de informações, como o suporte, as características anatômicas, as
camadas para a policromia e douramento, o tipo de carnação e as peculiaridades
de cada peça. Claro, ainda as condições de conservação da peça. O mesmo ocorria
quando nos deparávamos com uma pintura.
O Professor Jair nos levou para visitar a obra de restauro do
teto da Capela da Ordem Terceira de São Francisco de Assis ouropretana. Quando
entramos, a nave estava toda ocupada por andaimes de madeira. Olhamos para cima e só se via as peças roliças
de eucalipto, nada do teto. Logo, o Professor disse: – Vamos subir para vocês
conhecerem de perto a obra do Mestre Ataíde. Aquilo era uma verdadeira
“geringonça” ou “trapizonga” e se movia quando subíamos, dava a sensação de que
tudo poderia desabar em segundos. Escalamos e tivemos o privilégio de
contemplar os detalhes do teto fabuloso. – Tive a honra de tocar os pés de Nossa
Senhora da Porciúncula. Olhei nos olhos arregalados dos anjinhos e pude observar
toda estrutura de arquitetura fingida. Foi com o Mestre Jair Inácio que
encontramos o magistral Mestre Ataíde.
Memoráveis foram nossas aulas sobre Antônio Francisco Lisboa, o Mestre Aleijadinho. Jair Inácio veio ser um dos primeiros estudiosos das esculturas executadas por este artista ouropretano. Ele foi um dos pareceristas pioneiros para a identificação dessas obras de arte, que alcançaram valores inimagináveis. O mestre da restauração nos ensinava como nos colocar diante de tantas obras primas da escultura setecentista produzidas por Aleijadinho. E como analisar e identificar cada uma delas. Passávamos horas seguidas a ouvir, observar e anotar. Do cabelo ao filtrum labial, da gesticulação à postura dos pés, do panejamento às dobras, o Professor, aos poucos, nos revelava o que descobrira com sua própria percepção e com seus estudos. Sempre enfatizava, só se faz uma intervenção após a compreensão da obra de arte em sua totalidade.
Escultura de Aleijadinho, São João Evangelista, Capela da Ordem Terceira de São Francisco – São João del-Rei. Fotografia: do autor.
Na FAOP, com o seu Curso
de Restauração Artística, formou bons profissionais; desde a primeira turma,
que teve como participantes Adriano Ramos,
Ângela Leite, Ângela Pinheiro, Deolinda Vicente Rioga, Fátima Guedes, Joaquim
Manteiga, José Efigênio Coelho Pinto, Júlia Amélia Vieira, Júlio Hermendane,
Júlio Victoria Barros, Klauss Ataíde, Luiz Antônio Chiquitão, Márcia Valadares,
Maria de Jesus Versiani, Maria José Assunção da Cunha, Marta Rioga, Marta Rúbia
Resende, Mônica Versiani, Ney Cokada, Orlando Ramos, Paulo Chiquitão, Sílvio
Luiz Rocha Viana de Oliveira, Sueli Damasceno e Vinícius Godoy.
No período em que morei na Rua das Lages, sempre me encontrava com Jair Inácio e também com sua amada, Zenith Alves Inácio, mais conhecida como Dona Zinha. O casal teve os filhos Roxana Inácio, Laida Inácio, Turinã Inácio e Lino Inácio.
Quando Jair
Inácio trabalhava na restauração da Igreja de São Francisco de Assis, deparou com um conjunto de riscos
arquitetônicos, em uma das
paredes do corredor que dá acesso da nave à sacristia, ao lado da capela- mor. Situa-se na ala, à esquerda de quem
entra no templo. O talentoso
restaurador teve a feliz inspiração de deixar aqueles riscos expostos, depois de remover,
cuidadosamente, toda a massa que, até
então, os encobria. Na parede onde se situam aqueles riscos, podemos observar, bem nítidas, as marcas
dos ponteiros, dos compassos de
ponta seca, as linhas de concordância, segundo observação do professor de arquitetura da FAU/USP,
Dr. Benedito Lima de Toledo, em
sua obra Esplendor do Barroco Luso-Brasileiro. (Dom Barroso, 2017).
Os riscos encontrados e tratados pelo restaurador, podem ser apreciados até o presente e são elementares para se entender sobre a idealização e a execução de obras do período colonial. Esses traços da parede franciscana foram objetos de nossas aulas, o Professor Jair nos apresentava com imensurável prazer, pois a partir deles podia se imaginar como se projetava uma fachada ou mesmo um retábulo naquela época.
Jair Inácio na Europa. Acervo da família, s/d.
Jair Inácio e equipe do IPHAN. Acervo ACIPHAN-RJ, s/d.
Teto da capela-mor, Capela de Nossa Senhora do Rosário dos
Homens Pretos,Prados. Pintura restaurada por Jair Inácio e atribuída a Joaquim
José da Natividade.
Em algumas cidades, passou mais tempo, como foi o caso de
Prados, quando restaurou o teto da Capela de Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos – abra atualmente atribuída ao pintor Joaquim José da Natividade. Nessa
ocasião o restaurador expediu o primeiro parecer favorável ao tombamento
federal da Matriz de Nossa Senhora da Conceição dessa cidade, datado de
dezembro e 1971:
A matriz de Prados, que prima por
seu ótimo estado de conservação pelo zêlo dos paroquianos e tem por condições
climatérias, possui características excepcionais, com a ornamentação da portada
composta de aljavas, que expõe a influência aborígena na região. A ornamentação
do interior é da época Luiz XV, a que também é chamada de Rococó ou Dom José.
(Pasta Matriz de Prados, IPHAN, Tiradentes).
Sua passagem por Prados ficou registrada ainda em uma fotografia, quando participou do tradicional Piquenique da Serra de São José, um os mais antigos do Brasil.
Jair Inácio no alto da Serra de São José, Piquenique de Prados. Década de 1970. Fotografia: acervo da família.
Em 1982, quando Jair Inácio faleceu, eu já vivia no Rio e
estudava na Escola de Artes Visuais do Rio de Janeiro. Depois de longo tempo, foi
nessa mesma cidade, durante pesquisa no ACIPHAN – Arquivo Central do IPHAN, que
reencontrei com o restaurador, através de diversos documentos e fotografias. Foi
uma grata satisfação e pude constatar sua relevância no cenário nacional da
proteção e da conservação do patrimônio cultural brasileiro.
Alguns documentos revelam as condições em que se encontrava o teto da Capela do Padre Faria, a destacar que existiu outro anterior, pelo fato de ter identificado tábuas com vestígios pictóricos mais antigos, provavelmente de brutesco nacional. Além do texto, Jair Inácio encaminhou ao diretor do órgão, Rodrigo Melo Franco de Andrade, algumas fotografias, que ilustram as informações textuais. Participou ainda sobre o andamento das obras na Igreja de Santa Efigênia e suas descobertas.
Documento enviado ao diretor Rodrigo Melo Franco de Andrade, sobre seus achados referentes ao teto da nave da Capela do Padre Faria e da Igreja de Santa Efigênia. Acervo ACIPHAN, 1965.
Fotografias enviadas ao diretor Rodrigo Melo Franco de
Andrade, sobre seus achados referentes ao teto da nave da Capela do Padre
Faria, Ouro Preto. Acervo ACIPHAN, 1965.
Por quase uma década, Jair Inácio esteve à frente das obras realizadas na Matriz de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, quando se descobriu elementos artísticos que se encontravam sob camadas de repinturas e foi tema de matéria jornalística de Maurílio Tôrres, que, posteriormente, foi diretor a FAOP.
Registro da obra de restauração da Matriz de Nossa Senhora do Pilar, sob a coordenação de Jair Inácio. Matéria do jornalista Maurílio Tôrres,de 1960, que, posteriormente, foi diretor da FAOP.
Atuou na obra de restauração artística da Matriz de Nossa
Senhora do Pilar de São João del-Rei, na ocasião em que foram descobertas as
pinturas arquitetônicas das ilhargas da capela-mor. São os painéis a moda de
azulejaria, executados nos tons de azul, com armações ilusionísticas e cenas do
Antigo Testamento.
O profissional de alta qualificação teve reconhecimento e apoio de imprensa. Diversas matérias registraram seus feitos e descobertas, como a veiculada no jornal O Globo, de 1973.
Recorte de jornal O
Globo, de 1973. Acervo ACIPHAN – RJ.
Sua vasta atuação como restaurador
pode ser apreciada na pesquisa de Isabel Cristina Nóbrega, intitulada Jair
Afonso Inácio e sua contribuição à preservação do patrimônio histórico e
artístico nacional, orientada por Percival Tirapeli e defendida junto à
UNESP, em 1996.
Com trajetória tão profícua e atuação
em tantas localidades, o restaurador foi aos poucos se dedicando mais às
atividades de transmitir conhecimentos, ou seja, passou a se dedicar ao Ensino.
O primeiro convite para lecionar partiu do arquiteto, professor, pesquisador e
autor Sylvio de Vasconcellos, para Jair Inácio ministrar um curso na Escola de
Arquitetura da UFMG, isso ainda na década de 1960.
Convite da Escola de Arquitetura da UFMG, assinada por Sylvio de Vasconcellos a convidar Jair Inácio para ministrar curso. Acervo UFMG.
Com o dom de transmitir e ensinar,
Jair Inácio acabou por se tornar um excelente professor e aos poucos foi se
afastou das grandes obras. Provavelmente, não apenas pela grande quantidade de
problemas que acarretavam, mas principalmente pela eterna falta de verbas para
a devida manutenção e conservação do patrimônio cultural brasileiro. Além
disso, Jair Inácio amava por demais sua terra natal e sua família; sempre que
podia, preferia ficar mais próximo de sua amada Zinha e de sua prole.
Em 2017, na Galeria Ney Cokada (que foi aluno da primeira turma do Curso de Restauração da FAOP), no Instituto Federal de Minas Gerais – Campus Ouro Preto, sucedeu a exposição em homenagem a Jair Inácio. Essa mostra deveria ter percorrido várias localidades, para que os jovens e estudantes em geral pudessem conhecer um pouco sobre esse personagem tão especial para as artes e para o patrimônio cultural.
Cartaz da exposição “Jair Inácio – O patrimônio em Minas Gerais. Instituto Federal de Minas Gerais – Campus Ouro Preto, 2017.
Durante a pandemia de Covid-19, a jornalista e
doutoranda Carolina Coppoli produziu e lançou, em 2020, seu primeiro trabalho
de média metragem, intitulado: Jair Afonso Inácio – as virtudes do homem e a
vida pelo patrimônio brasileiro. Trabalho de registro expressivo sobre a trajetória desse profissional e
vinculando-a à sua rede cultural, com depoimentos de conhecidos, parentes, Dona
Zinha, os filhos Roxana, Laida, Turinã e Lino. Trabalho necessário, que
humaniza do pioneiro da restauração e o apresenta como cidadão que se orgulhava
não somente de sua cidade, mas também de suas origens e de seu núcleo familiar.
Oportuno, o trabalho de Carolina Coppoli divulgou aspectos da vida de Jair
Inácio e foi tema de atividades de Educação Patrimonial. Isso foi muito bom,
isso foi muito importante.
Quando se
completa um ciclo fechado, 90 primaveras, nossa gratidão ao exímio restaurador
e professor Jair Inácio – gratidão por sua generosidade, seus ensinamentos,
suas fabulosas aulas de campo e por nos levar a compreender o que é o Barroco, o
Rococó e a Arte do período colonial brasileiro.
Luiz Antonio da Cruz, Tiradentes-MG
ACIPHAN – Arquivo Central do IPHAN –
Rio de Janeiro.
CRUZ, Luiz Antonio da. Os tetos
pintados e as pinturas ornamentais na Vila de São José: contexto histórico e
artístico entre os séculos XVIII e XIX. Tese de doutoramento defendida
junto à Escola de Arquitetura e Urbanismo da UFMG, 2021.
NOBREGA, Isabel Cristina. Jair
Afonso Inácio, um pioneiro na preservação do patrimônio artístico brasileiro.
Dissertação de mestrado apresentada na UNESP, 1997.
https://jairafonsoinacio.blogspot.com/
Comentários
Postar um comentário